Direto da Sacristia
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Dossiê FSSPX – Parte III

Postado em 08 maio 2012por E. Marçal

Dossiê FSSPX – Parte III
Diálogos, reconciliações e esperança de retorno definitivo 

Era. Lefebvre estava certo em sua preocupação: o fim de sua vida estava próximo. Tão próximo que ele viveu menos de três anos após ser punido, ele e os outros 5 bispos, com a excomunhão. Morreu aos 85 anos, numa segunda-feira, às 03h25 do dia 25 de março de 1991, segunda-feira da Semana Santa, em Martigny; esperara muito para operar a sua causa mortis: um tumor canceroso do tamanho de três laranjas extraído do seu estômago. Segundo relatos de testemunhas, em seus últimos dias, teria dito: “Eu não quero estar diante de Deus para ser questionado: ‘O que você fez com seu episcopado?’” Às suas exéquias, oficiadas no Seminário de Êcone no dia 02 de abril seguinte – onde também está a sua sepultura, compareceram cerca de 20 mil pessoas. O Núncio de então e o bispo de Sion, Mons. Schwery, estiveram no funeral. Sobre o caixão, afixaram uma placa onde gravaram as palavras que ele pedira: Tradidi quod et accepi (Transmiti o que recebi).

Peregrinação da Fraternidade a Roma durante o Ano Santo 2000
Estiveram presentes mais de 6000 fiéis assistidos por eles e provenientes de todas as partes do mundo

Apesar de tudo, os filhos espirituais de Lefebvre nunca deixaram de dizer que eram católicos. Continuaram a declarar reconhecimento da autoridade do Romano Pontífice e fidelidade à Igreja. Não se privaram, por exemplo, da peregrinação jubilar a Roma por ocasião do Ano Santo de 2000, quando, diante dos olhares incrédulos de muitos, avançaram pela Via dela Conciliazione, seguindo Mons. Fellay que erguia nas mãos uma simples cruz de madeira, e adentraram na Basílica de São Pedro, um dos locais para cumprir os seculares exercícios espirituais feitos durante os Anos Santos.

Dom Antônio Castro Mayer:
compartilhou com Lefebvre também a mesma sanção canônica
e a fundação de uma fraternidade sacerdotal

No Brasil, continuou uma extensão da obra iniciada pelo Arcebispo e continuada por Dom Castro Mayer até sua morte, pouco tempo depois daquele, em 26 de abril de 1991, às vésperas dos 87 anos de idade. A União Sacerdotal São João Maria Vianney fora fundada em 1982 com os mesmos desejos da Fraternidade São Pio X: reunir seminaristas, sacerdotes e fiéis que queriam continuar usando ordinariamente os livros anteriores à reforma do Vaticano II. Após a morte de Dom Castro Mayer, a União foi governada por Dom Licínio Rangel. Acontecera a este o mesmo ocorrido em Êcone: recebera a sagração episcopal sem mandato pontifício em 28 de julho de 1991, em São Fidélis (Rio de Janeiro), em cerimônia presidida por Bernard Tissier de Mallarais, sendo assistido por Alfonso de Galarreta e Richard Williamson. O fato foi muito noticiado na época por jornais de circulação nacional.

Dom Fernando Rifan,
Administrador Apostólico da Administração Apostólica São João Maria Vianney.
Sua sagração episcopal em 2002 foi um dos marcos do fim do cisma de Campos 

Mas, os “Padres de Campos” e o cisma instaurado também lá, não resistiu muito tempo: em 2001, Dom Licínio e os seus 25 padres escreveram uma carta ao Papa João Paulo II, expressando total submissão e comunhão com Roma. A reaproximação acontecera quando da peregrinação jubilar que haviam feito com a Fraternidade São Pio X. O Vaticano não só reconheceu a União, como erigiu-a como Administração Apostólica São João Maria Vianney, e nomeou Dom Licínio como seu primeiro administrador apostólico, reconhecendo, portanto, a sua sagração episcopal ilicitamente conferida dez anos antes e concedendo-lhe a sede episcopal titular de Zarna. Ele permaneceu no cargo por pouco tempo, parecendo que só aguardara a plena comunhão com o Papa para morrer em paz; adormeceu no sono do Senhor, 5 meses depois de ver o fim do cisma de Campos, em 16 de dezembro de 2002. Sucedeu-lhe no governo da Administração o até então Administrador Coadjutor, que Dom Licínio solicitara a João Paulo II, Dom Fernando Areas Rifan. Sua sagração episcopal acontecera em 18 de agosto de 2002 (veja o vídeo), presidida pelo Cardeal Dario Castrillón, então Presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”, assistido por Dom Alano Maria Pena, então Arcebispo de Niterói – Província Eclesiástica onde a sede da Administração está situada, e por Dom Licínio Rangel. Dom Fernando Rifan é titular de uma sede episcopal hoje extinta Cedamusa (no norte africano).

Dom Fernando Rifan com o Papa Bento XVI

Clero secular da Administração Apostólica, durante o seu retiro anual
À esquerda de Dom Rifan, Pe. Paulo Ricardo Azevedo 

A Administração Apostólica São João Maria Vianney é, portanto, uma circunscrição eclesiástica especialmente ereta àqueles que querem permanecer unicamente na espiritualidade e formação do usus antiquior, mas não deixam de reconhecer a validade do Concílio Vaticano II, suas reformas, seus documentos e os Pontífices eleitos depois dele. Em 2007, elencava 40 sacerdotes em seu clero, 32 seminaristas, 75 religiosos, cerca de 28 mil fiéis e 24 escolas. Pode erigir – como já o fez – paróquias pessoais em qualquer território, até mesmo fora de sua sede, para atender os fiéis que assim o desejarem. Dom Fernando Rifan é, por conseguinte, até agora, o único bispo licitamente sagrado e que celebra (quase que) exclusivamente o rito antigo (eventualmente concelebra em cerimônias da forma ordinária; durante a Assembleia Geral do episcopado brasileiro, por exemplo), que está em plena comunhão com a Igreja e seu Administração é incorporado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Na mesma cidade de Campos, estão sediadas a Diocese homônima, como qualquer outra diocese, e a Administração Apostólica, que não é restrita a limites físicos.

Procissão da Fraternidade em direção à Basílica de São Pedro
Peregrinação do Ano Santo 2000 

Apesar das acusações motivadas por incompreensões e ódio e que diziam que Bento XVI “queria voltar atrás, para antes do Concílio”, o Pontífice decidiu por bem remover, em decreto da Congregação para os Bispos de janeiro de 2009, a excomunhão aplicada aos quatro Bispos ordenados sem mandato pontifício, atendendo a insistentes pedidos de Mons. Fellay. Em carta emitida ao episcopado mundial e explicando-se sobre sua atitude, o Papa justificou-se que havia tomado tal decisão pelo mesmo motivo com que foram lançadas as excomunhões em 1988: convidar os quatro Bispos ao regresso. E, ademais, que a Igreja não poderia permanecer indiferente com uma comunidade que, naquele ano, contava com “491 sacerdotes, 215 seminaristas, 6 seminários, 88 escolas, 2 institutos universitários, 117 irmãos, 164 irmãs e milhares de fiéis”. Mas, antes, a Fraternidade deve reconhecer que “a autoridade magisterial da Igreja não se pode congelar no ano de 1962”. E que ainda não possui uma posição canônica regular não por “razões disciplinares, mas doutrinais”. Bento XVI, ao fim de sua explicação, ainda se perguntou retoricamente se o que fez era necessário. Respondeu-se e a quem questiona assim que a Pedro foi dada a missão de confiar os irmãos na fé e que o mesmo Apóstolo, em sua primeira Carta, exortou a todos a estarem sempre prontos a responder a quem questionasse a sua fé. Despediu-se com as palavras de São Paulo aos Gálatas, em não abusar da liberdade e, assim, destruir-se mutuamente.

Questionado sobre o levantamento também da excomunhão de Mons. Lefebvre, o Cardeal Giovanni Battista Re, que assinou o decreto de remissão das censuras canônicas, afirmou que não compete à Igreja definir a validade de sanções contra pessoas já falecidas.

Não obstante, houve posições de alguns dos quatro Bispos que questionaram a sua intenção de reconciliar-se com a Igreja: entre a publicação do decreto de remissão das excomunhões e da carta do Papa, foi divulgada em 21 de janeiro de 2009 (com intrigantes) dois meses de atraso da gravação) uma entrevista de Mons. Richard Williamson a um canal televisivo sueco, dizendo acreditar no revisionismo do Holocausto, que não haviam existido câmaras de gás e, portanto, os judeus não tinham morrido nelas, mas em campos de concentração nazistas. Tão pensamento é ilegal e punível como crime nos tribunais alemães, onde foi iniciado uma investigação criminal do bispo. À época, a situação tornou-se tão constrangedora para a Santa Sé de modo especial, em suas relações com a comunidade judaica e com governos que jamais negariam o genocídio de judeus e o número de vítimas da Segunda Guerra Mundial, que Bento XVI disse ao jornalista alemão Peter Seewald, no livro-entrevista “Luz do mundo” lançado em 2010, que se tivesse tomado prévio conhecimento das vergonhosas declarações de Mons. Williamson, havia separado o seu caso dos demais Bispos até então excomungados, e não revogaria a sanção canônica que pesava contra ele. Consciente da polêmica que tinha provocado, a ponto de ter sido expulso da Argentina pelo Governo e ser rechaçado por membros da Fraternidade, dirigiu um pedido de perdão ao Papa por suas palavras impensadas e se comparou ao profeta Jonas, que, jogado ao mar, fez com que toda a tempestade, ora deflagrada, acabasse. Foi advertido pelo Papa e por seu Superior, Mons. Fellay, a não mais apresentar declarações públicas como o tinha feito.

Mons. Tissier também não poupou duras críticas ao Papa Bento XVI em entrevista a uma revista, definindo-o como “um verdadeiro modernista com uma teoria completa de modernismo atualizado”.

Os sacramentos administrados por sacerdotes e bispos da Fraternidade São Pio X são válidos?

O próprio Bento XVI respondeu a isso na mesma carta enviada aos bispos do mundo inteiro, sobre a remissão das excomunhões, assinada em 10 de março de 2010: Enquanto a Fraternidade não tiver uma posição canônica na Igreja, também os seus ministros não exercem ministérios legítimos na Igreja. […] Especificando uma vez mais: enquanto as questões relativas à doutrina não forem esclarecidas, a Fraternidade não possui qualquer estado canónico na Igreja, e os seus ministros — embora tenham sido libertos da punição eclesiástica — não exercem de modo legítimo qualquer ministério na Igreja.

Em 1996, Mons. Nobert Brunner, então bispo de Sion (Suíça) foi o primeiro a questionar sobre isso a Congregação para os Bispos. Esta, somando com uma resposta do Pontifício Conselho para a Interpretação dos Textos Legislativos, definiu que os sacerdotes ordenados ou por Mons. Lefebvre ou por algum dos quatros Bispos ilicitamente sagrados por ele e membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, são suspensos a divinis por pretenderem se incardinar numa instituição não canonicamente reconhecida pela Igreja e administrarem os sacramentos são acéfalos, não incardinados em diocese ou instituto canônico algum, que validamente lhes concederiam a jurisdição requerida para a lícita administração dos sacramentos do Batismo, Eucaristia, Matrimônio e Unção dos Enfermos. Do mesmo modo, são ilícitos os sacramentos da Ordem e da Confirmação conferidos por qualquer um dos quatro bispos da Fraternidade.

Reunião dos Superiores da Fraternidade na sede do Distrito italiano
sobre o conteúdo do Preâmbulo doutrinal entregue pelo Cardeal Levada.
Aparentemente, Mons. Williamson não compareceu ao encontro,
como ele não pode ser visto na foto junto aos outros três Bispos.
07-08 de outubro de 2011 

Todavia, primeiramente, a Igreja licita e valida qualquer sacramento administrado em perigo de morte por qualquer padre suspenso ou até mesmo laicizado (não mais clérigo), em favor da necessidade da salvação da alma do fiel. Os ministros ordenados da Fraternidade, em segundo lugar, advogam em causa da validade dos sacramentos administrados por eles em virtude da mesma necessidade universalmente defendida pela Igreja; alegam, ainda, que a jurisdição requerida para a mesma validade seria supressa pela Igreja (Ecclesia supplet) em favor dos fiéis que necessitam dos sacramentos e até mesmo em favor dos tribunais eclesiásticos instituídos pela Fraternidade para julgares casos de nulidade matrimonial.

Em maio de 1991, Mons. Ferrario, bispo do Havaí, emitiu um decreto de pseudo-excomunhão a alguns católicos de sua diocese que assistiram a missas celebradas por sacerdotes da Fraternidade e por receberem um bispo desta para administrar a Confirmação. Contudo, o Cardeal Ratzinger declarou que a atitude dos fiéis não constituía um delito de cisma e que, portanto, sem fundamento, o decreto episcopal não tinha nenhuma validez.

Contudo, para qualquer fiel católico que não pertence à comunidade leiga da Fraternidade São Pio X, é válida a mesma lei que rege a recepção dos sacramentos administrados pelo clero ortodoxo, que não reconhece a primazia de Pedro: só em caso de verdadeira necessidade, caso não haja ministro ordenado, incardinado e com legítima jurisdição, é que qualquer católico pode receber sacramentos administrados por qualquer ministro ordenado católico, independente de sua situação canônica.

* * *

Chegamos à “feria quarta” marcada pela Congregação para a Doutrina da Fé para a discussão da resposta dada pela Fraternidade, na pessoa de seu Superior-geral, Mons. Bernard Fellay. Talvez assistimos ao fim de um dos mais graves problemas canônicos (e por que não pastorais?) iniciado há quase um quarto de século. O Papa oferece a eles oportunidade de retorno como o fez aos anglicanos, aos luteranos e a todos quantos pedem e ainda pedirão para regressar à Igreja de Deus. Esse não é a primeira chaga na Igreja ao longo dos séculos. Nada desse cenário é novo. Se é verdade que um grupo de 25% dos membros da Fraternidade se recusarem, como ameaçam, não aceitar qualquer acordo com o Santo Padre, é obstinar-se no erro e adiar para dias desconhecidos a sua regularização canônica tão necessária!

O que mais importa, como já falamos, não é a discussão com um grupo de católicos que se opôs ao Vaticano II e que unicamente prefere o rito romano clássico como o que expressa a sua sensibilidade litúrgica; o que importa são milhares de fiéis, um clero acéfalo, o desejo do Papa de reunir todos em um só rebanho; o que importa é a glória de Deus, a exaltação da fé e da Igreja e a salvação das almas. Por tudo isso, rezemos; pois, na Igreja, como dizem, há lugar para todo mundo, mas “cum Petro et sub Petro”.

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