O renascimento católico, segundo Dom Henrique Soares
Essa entrevista fora marcada 3 semanas antes. Dom Henrique gentilmente nos atendeu e prontamente aceitou o convite. Marcamos para conversar antes da celebração do dia 13 de julho de 2012 da Novena de Nossa Senhora do Carmo do Recife, na qual ele pregaria.
No dia marcado, chegamos ao Convento do Carmo. Ainda não conhecíamos pessoalmente aquele sábio bispo. Encontramo-lo sentado na recepção, conversando com uma religiosa. Após alguns minutos de espera e a nossa apresentação, dirigimo-nos para a sala-de-estar situada no segundo andar do centenário prédio no centro da capital pernambucana. Era nossa primeira entrevista e, além disso, a famosa figura de nosso convidado não nos permitia a calma necessária para a gravação de tudo. Devido a isso, nem notamos a baixa luminosidade da sala nem a pressa como fazíamos as perguntas (risos), as quais ele pediu para ouvir antes e, depois de pouco tempo, já estávamos gravando. O problema da iluminação não nos permitiu muito ser corrigido: por ele repetidas vezes pedimos desculpas e prometemos corrigi-lo nas próximas entrevistas. E quanto ao estado nervoso de nosso entrevistador (risos), julgamos por bem substituir as perguntas mal feitas e com voz trêmula, por textos exibindo o resumo delas.
Afinal, temos um áudio compreensível e um vídeo onde podemos assistir à explicação do Bispo sobre assuntos ainda atuais. Por isso que não desistimos da ideia de publicarmos esta entrevista mesmo após mais de 1 ano de sua gravação. Veremos como ele nos fala de seus anos de formação sacerdotal em tempos mais difíceis do que os nossos, durante o nascimento e o rápido apogeu da “Teologia” da Libertação. Também esclarece os objetivos e a reta intenção do Concílio Vaticano II e de seus documentos, onde está, inclusive, exposto o “sensus fidelium”, o reconhecimento dos fiéis do que é e do não é católico. Assim ele determina que o “renascimento litúrgico”, iniciado e insistentemente defendido pelo então Papa Bento XVI, é genuinamente católico e legítimo, uma resposta para os tempos atuais. Por fim, interpreta a Igreja no Brasil hoje.
Os seus 49 anos de idade e pouco mais de 3 anos de sua sagração episcopal não o impediram de se desenhar no episcopado brasileiro como uma nova voz para os tempos atuais. Expõe seu pensamento e a doutrina da Igreja em homilias comuns, além de fazê-lo em pregações e palestras onde quer que o convidem. Nas comemorações do segundo aniversário do blog “Direto da Sacristia”, conversamos com o Bispo Auxiliar de Aracaju, Dom Henrique Soares da Costa.
1. Excelência, assim como o mundo, a Igreja também passou por transformações. E o fato de não observar um rumo certo para acompanhar essas mudanças, foi uma das causas da crise religiosa que igualmente é vista dentro da Igreja. Vossa Excelência vive a diferença de dois períodos históricos: hoje já não vive o Papa de anos atrás, Vossa Excelência já não é mais seminarista, mas um bispo, e vivemos em outra época. Qual realidade a Igreja vivia em seus anos de formação sacerdotal e o que isso provocou hoje no cenário religioso brasileiro?
Primeiramente, eu não diria que a Igreja não seguiu um rumo certo. É preciso que compreendamos o tempo de hoje olhando toda a história da Igreja. Nós ainda estamos no período pós-conciliar. Todas as vezes que houve na Igreja um concílio de grande porte, o período depois do concílio sempre foi turbulento; sempre, isso é normal. É um período, é como um terremoto, uma “rearrumação” do terreno. Então, é o que nós estamos vivendo.
Muitos acusam o Concílio Vaticano II, o veem como um mal. Isso é um engano. Era necessário um Concílio Vaticano II. O problema não está no Concílio; o problema está nas interpretações que se fizeram do Concílio, no famoso e maldito “espírito do Concílio”. O “espírito do Concílio” é um fantasma, é um demônio que deve ser exorcizado. Porque o verdadeiro “espírito do Concílio” só se encontra no texto do Concílio. Se você pega o texto do Concílio Vaticano II, por exemplo, o texto da Sacrossanctum Concilium, o texto da Lumen Gentium, toma-se um susto: “mas, meu Deus, o Concílio prega isso? Então, não prega essas loucuras que se dizem, que se fazem?” Então, a Igreja não tomou um rumo errado. A Igreja percebeu que era preciso realmente se reorganizar, porque estamos numa revolução social como nunca tivemos antes. Pela primeira vez a maioria da população mundial é urbana; os meios de comunicação, que são um fenômeno novo, fizeram com que a família já não tenha quase nenhuma incidência sobre as pessoas. Antigamente, as pessoas nasciam dentro de uma tradição, e, a partir dessa tradição, elas se compreendiam, elas assumiam os valores dessa tradição e [a tradição] formava a vida delas. Hoje não é mais assim. Hoje, cada pessoa parece que começa do zero a sua vida, já não é mais o meu ambiente, já não é mais a minha família que me introduz nos amores da vida, mas os meios de comunicação. Então, a Igreja teve que se – eu vou usar uma palavra que não gosto – modernizar – mas, com bem aspas – para poder continuar cumprindo a missão dela. Então, o Concílio Vaticano II – eu repito – é uma bênção para a Igreja. O uso que fizeram do Concílio tem sido ainda muito confuso.
Você me perguntou pelo o meu tempo de seminário. Eu peguei sim ainda o pontificado de João Paulo II todo no seminário e, meu Deus, como era confuso! Como era pior do que hoje! Contraposições tremendas, a Teologia da Libertação na sua época mais virulenta. E a Teologia da Libertação – e é preciso que se diga, muitos não gostam quando dizem – mas, ela fez mais mal do que bem à Igreja. A preocupação social é um bem, a percepção que existe um pecado não só pessoal, mas um pecado social é verdadeira, é um bem, mas fazer, como a Teologia da Libertação fez, instrumentalizou a fé em função da questão social, usou análise marxista muitas vezes – algumas vezes explicitamente, outras vezes implicitamente –, mas usou e ninguém pode negar isso. Além de causar, como o próprio Santo Padre Bento XVI disse a um grupo de bispos brasileiros na visita ad limina, que causou muito mal, muita insubordinação e esvaziou muito da sacralidade e da fé de tantos do clero, de tantos da vida religiosa. E estamos vendo o resultado aí: nós estamos num período de crise na Igreja, e essa crise atual é fruto da crise plantada nos anos 60 e 70 e primeira metade dos anos 80. João Paulo II começou a reordenar, a redirecionar o modo de se viver, de se compreender o Vaticano II, e agora o Santo Padre Bento XVI continua esse trabalho com a famosa expressão “hermenêutica da continuidade”.
Hoje existe menos contraposição na Igreja, existe menos polarização. Graças a Deus! Mas, infelizmente, esse processo de dessacralização, esse processo, essa crise de fé na Igreja, ainda está muito presente. Mas, existem já indícios que nos fazem ter esperança. Agora, é importante entender uma coisa: a Igreja não é nossa, é de Cristo. É Ele quem a guia. Ele sabe, Ele não nos abandonou. Ele sabe o que quer e por onde está guiando a Igreja. Quem perseverar até o fim, quem for fiel vai resistir, vai permanecer até o fim.
2. Mesmo com a resistência de alguns, a Igreja vive o que podemos chamar de um renascimento católico. Há discussões mais sérias e observações fiéis da Teologia, Liturgia e do nosso patrimônio espiritual. Isso a que assistimos é um processo – digamos – natural depois de anos difíceis ou começa a ser o resultado do esforço de muitos que já não toleraram o cenário teologicamente heterodoxo do qual a Igreja foi muitas vezes palco nas 4 últimas décadas?
As duas coisas. Primeiro, é uma reação aos exageros de antes. É preciso entender: por exemplo, quando você diz “renascimento católico”, é que na verdade as gerações jovens estão cansadas da secularização, estão cansadas dos relativismos teológicos, que levam ao relativismo moral, estão cansadas de católicos, de padres, de religiosos que escondem a identidade em nome de um diálogo com o mundo. É um diálogo mentiroso; um diálogo que nega a identidade não é diálogo, é simplesmente rendição. Nós dialogamos quando mantemos a nossa identidade, aí o diálogo é verdadeiro. Respeito a identidade do outro e mantenho a própria identidade. Então, existe já um cansaço desse modelo de um diálogo com o mundo sem critério, de um diálogo com o mundo que na verdade mascara a nossa identidade.
Graças a Deus há uma geração jovem sim e que incomoda muito, incomoda e assusta. E, a mim mesmo, me alegra muito, porque é o futuro da Igreja. Entende? Uma geração jovem que quer seriedade. Temos que entender que o jovem de hoje não é o dos anos 60. O jovem dos anos 60 contestava; o jovem cristão de hoje quer redescobrir suas raízes. Em geral, se diz assim: são doentes, têm saudade do que não viveram. Essa afirmação é falsa. Eles são sadios, eles têm neles o “DNA católico”. Aquilo que o Concílio Vaticano chamou de sensus fidelium, o instinto que os fiéis têm para as coisas de Deus, o instinto que o Espírito Santo – isso é Vaticano II puro – suscita na Igreja para que o povo de Deus distinga instintivamente o que é e o que não é católico. Então, os que os jovens de hoje têm é saudade, não é do que não viveram, das suas raízes católicas. Agora, é claro, nos compete educar essa saudade. Porque, se não educar, se torna uma coisa artificial. Por exemplo, o interesse pela Liturgia pode degenerar em esteticismo, entende?, em “pastoral de paninho”, e não é essa a questão! O problema é que a juventude vê aqueles valores que muitas vezes foram negados e quer voltar a eles, mas não sabe como; quer recuperá-los, esse recuperar não pode ser simplesmente voltar – o tempo não anda para trás – Cristo nos espera na frente, mas é exatamente o que o Santo Padre Bento XVI disse: uma “hermenêutica de continuidade”; ou seja, o homem sábio tira do seu tesouro, como diz Jesus, coisas novas e velhas. Então, exatamente como o Santo Padre Bento XVI propõe: nem mais nem menos. Caminhar para frente, não para trás, sem negar o futuro.
Agora sabendo distinguir, porque, por exemplo, às vezes eu vejo uns discursos – sobretudo, nos ambientes mais tradicionalistas – que são insustentáveis hoje. Por exemplo, sobre a liberdade religiosa: a questão do reino de Cristo na terra, o reino social de Cristo. Não adianta, esse discurso hoje em dia não faz parte da fé da Igreja, esse discurso era um modo de interpretar uma realidade numa conjuntura em que existia uma sociedade ainda cristã. Hoje a sociedade não é cristã. Hoje, Cristianismo voltou a ser uma religião de minoria. Então, nós temos que distinguir o que é essencial do que é conjuntural, do que é próprio do contexto de uma época. Isso ainda temos que aprender muito, a discernir em que progredir e o que conservar de um modo sadio. Mas, vamos adiante. Há sinais de esperança na Igreja e o Santo Padre Bento XVI nisso é um referencial indispensável.
3. Com isso, o que podemos esperar do futuro do ensinamento, da vida e da atuação da Igreja? Como o clero brasileiro é formado atualmente? O que ainda é necessário mudar?
Essa pergunta é muito complexa. Existem sinais de esperança, como eu já disse: existem muitos, muitos jovens que desejam uma Igreja mais focada na pregação do evangelho, uma Igreja que recupere os valores do sacro na Liturgia, e eu aplaudo e apoio esses jovens e entendo perfeitamente o desejo deles. Perfeitamente. Como eu digo, é preciso purificar para não ficar uma coisa folclórica, uma “pastoral de paninho”, uma busca não inteligente de passado, porque temos que entender isso, volto a dizer, a questão da “hermenêutica da continuidade”: vai-se para frente, recuperando, conservando aquilo que é importante.
Uma outra coisa: quanto à formação hoje nos seminários e nas casas religiosas; eu vejo com preocupação o seguinte: estão se formando dois tipos bem diferentes de religiosos e de padres: uns ainda segundo aquela mentalidade dos anos 60, 70, de secularização, de descaracterização do próprio a nível religioso; mas, por outro lado, vai crescendo, aos pouquinhos, mas de modo constante, uma busca de resgatar os valores que foram perdidos. Estamos hoje assim. Com duas, não se contrapõem, não há uma guerra, mas há estão no ar essas duas. Eu tenho medo que no futuro isso gere um choque muito grande, quase como se fossem duas Igrejas.
É preciso enfrentar com mais seriedade, com mais calma, essa questão da formação: “que tipo de formação nós queremos?” Mas, nós em comunhão com o Santo Padre, nós como a Igreja orienta: “que tipo de formação a Igreja gostaria para os seus padres, para os seus religiosos?”. Escutar mais Roma – isso é uma palavra maldita para muita gente. Mas, Roma! Cristo confiou a Pedro o pastoreio da sua Igreja. Claro, aos bispos também, em comunhão com Pedro. A referência deve ser Roma, deve ser o Magistério do Santo Padre. Então, acho que se levarmos mais a sério isso, conseguiremos uma formação do clero, dos religiosos mais – como eu diria? – mais equilibrada e sempre nessa linha, a continuidade, na evolução, a continuidade caminhando para frente.
É um desafio. Nós estamos ainda numa época de transição; é preciso esperar um pouquinho para ver. Mas, há sinais de esperança em toda essa crise. E as vocações aumentam naqueles ambientes onde essa dessacralização tem diminuído. Quanto mais dessacralizar, mais haverá crise de vocação e outras crises mais. Então, isso já está claro. Falamos tanto em ver os sinais dos tempos. Os sinais estão aí. Não vê quem não quer.