Direto da Sacristia
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Judas foi predestinado por Deus?

Postado em 22 abril 2011por E. Marçal

Seria que, para cumprir integral e indubitavelmente a Escritura que diz que o Filho do Homem haveria de ser traído, Judas foi predestinado por Deus e não teve outra escolha diferente da de entregar o Cristo para ser crucificado e morto?

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Após a sua conversão hoje mundialmente conhecida, para Santo Agostinho de Hipona não foi suficiente o batismo para a sua vida cristã, mas também a refutação de todos os erros que o fizeram procurar a Verdade, não onde ela estaria em plenitude, mas em fragmentos insuficientes. Um deles foi o maniqueísmo.

Os discípulos de Mani acreditavam que o mundo era governado por dois princípios inteiramente opostos: o Bem e o Mal. O primeiro era representado pelo espírito, e o segundo, pela matéria. Eles também governariam a vontade humana, logo as pessoas seriam como que induzidas – e não tentadas – a praticar más ações. Portanto, o mal seria ontológico – próprio do ser – e metafísico – um princípio, uma divindade. Sabiamente, o Bispo de Hipona refuta tal heresia. Ele começa argumentando, segundo o pensamento platônico e neoplatônico, que Deus é o Sumo Bem, e Bem para além do ser, respectivamente; logo, nem d´Ele não provê nada de mal, que seria contra Sua natureza divina. Tão logo, Ele, dentre outros dons, concedeu ao homem o livre-arbítrio, a deliberação sobre todos os seus atos, sobre os quais ele decide praticar ou não. Com efeito, Agostinho derruba dois erros do maniqueísmo – a ontologização do mal e a incapacidade humana de não praticar atos maus. Donde, portanto, vem o mal? Da liberdade humana, diz Santo Agostinho. O homem, ao decidir-se livremente a praticar coisas más, afasta-se do bem recusando a graça oferecida por Deus. Quando Adão e Eva desobedeceram a Deus, o ato introduziu o pecado no mundo e toda a humanidade recebe por solidariedade a corrupção ocasionada pela transgressão. A quebra da aliança perfeita com Deus produziu um efeito enorme, que só poderia ser refeita – mesmo com as alianças feitas com Abraão, Noé e Moisés – com um ato infinitamente grande. Isso aconteceu na Paixão e morte do Filho de Deus, algo impossível aos incrédulos, mas que enche de júbilo a sabedoria de Agostinho de Hipona, a ponto de ser por ele intitulada como “feliz culpa de Adão” que mereceu tão grande Redentor.

Nos Evangelhos, vemos que Judas fez parte do Colégio Apostólico; contudo, não encontramos nenhum relato do seu chamado feito por Cristo, apenas vemos seu nome elencado quando os autores listam os apóstolos. Isso é digno de nota, mesmo que tal detalhe tenha sido proposital, para excluir o chamado de alguém que depois traiu a vocação a que foi chamado por Deus. Judas esperava um reino político a ser instaurado por Jesus. Quando suas expectativas foram frustadas, ele, no ápice de sua desilusão e desespero, vende seu Senhor àqueles que sempre procuraram matar o Messias. Judas, então, foi um mero instrumento sem vontade e inanimado nas mãos das profecias bíblicas e apenas colaborou importantemente na obra da redenção?




Primeiramente: a Sagrada Escritura atesta que Deus quer que o Evangelho seja anunciado a todos os povos (cf. Mt 28, 19), que todos os homens O conheçam, se salvem, cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4). Por outro lado, nela também lemos que há homens que se perdem (cf. Jo 17, 12), e que o Senhor exerce uma providência especial para salvar os que não se perdem. Por conseguinte, nada pode o homem fazer de bom sem ser para isso auxiliado pela graça divina, e, mediante os atos bons, chega-se à eterna bem-aventurança. Portanto, só com o indispensável auxílio de Deus o ser humano poderá gozar de Sua visão beatífica. Contudo, surge um problema: como conciliar a primazia da ação de Deus com a liberdade de arbítrio humano? Esta não é sufocada por aquela?

Duas premissas são propostas pelos teólogos para uma conclusão: segundo o jesuíta Molina, Deus oferece a graça a todo homem, e este é livre para aceitá-la ou não; caso a aceite, a graça se torna eficiente, e induz o homem a praticar o bem. Sobre a predestinação, o mesmo jesuíta afirma que Deus, desde a eternidade em sua ciência média, prevê como cada homem se comportaria com relação à graça nas mais variadas circunstâncias da vida. Assim sendo, o Criador decreta colocar tal indivíduo em tais e tais circunstâncias em que Ele sabe que a criatura aceitará a graça, e irá merecendo a salvação eterna. Contrariamente, o sistema tomista reza que além de Deus conceder ao homem a liberdade, também Ele é responsável pelo uso que é feito dela. Para o tomismo, Deus concede ao homem a graça antes mesmo de prever seus méritos, e confere-lhe os meios necessários para que ele alcance a salvação. Os seus bons atos seriam fruto da condescendência divina e não algo são predeterminados. Por fim, em várias ocasiões a Igreja nunca encontrou sequer vestígios de heresia em qualquer uma das hipóteses. Um católico pode acreditar ou em uma ou em outra, já que ambas salvaguardam a soberania da ação de Deus e o livre arbítrio do homem. Portanto, molinistas e tomistas dividem um campo comum, determinado e ensinado pela Igreja: a conversão a Deus é um feito Seu e não uma conquista unicamente concretizada pela força humana; a perseverança final na morte ou o estado de graça é dom especial de Deus, que são implorados pela oração; e a predestinação “adequada” (todos os auxílios sobrenaturais, desde a conversão até a boa morte) é gratuita e anterior à previsão dos méritos.

O Concílio do episcopado da Gália, no século V, condenou a sentença: Cristo, Senhor e Salvador nosso, não morreu para a salvação de todos…; a preciência de Deus impele o homem violentamente para a morte; e todo aquele que se perde, perde-se da vontade de Deus…; alguns são destinados à morte, outros predestinados à vida”.

Como também é verdade que Deus, o Infinito, criou seres finitos aos quais é inerente a falibilidade. Apesar de disporem de meios necessários para a não-perdição eterna, os homens podem se encaminhar para a eterna ruína, e o Criador não lhes é injusto ao permitir que isso aconteça, se antes lhes foi oferecida outra possibilidade. Ainda, o Concílio de Quierzy na Gália em 853 declarou que “o fato de que alguns se salvam, deve-se a um dom d´Aquele que os salva; o fato de que outros se perdem, deve-se ao mérito (mau ou demétrio) dos que se perdem”. Contudo, ainda não nos é possível compreender plenamente como perfeitamente se conciliam em Deus a justiça, misericórdia e liberdade, como também o motivo de ter sido escolhido Pedro e não Judas.

Em segundo lugar (e o que é definitivo): Se Deus tivesse predestinado indubitavelmente a Judas ser o traidor, e nisso extinguir-se nele toda livre vontade, então o mal procederia de Deus, logo Ele não seria o Sumo Bem. Ele traiu o Messias por ceder miseravelmente a uma tentação de Satanás. Quanto ao que ele fez com sua vida, “não compete a nós julgar o seu gesto, substituindo a Deus infinitamente misericordioso e justo” (Bento XVI). Pedro negou que conhecia Jesus, mas arrependeu-se e sua fidelidade atingiu o ápice de entregar até a própria vida em nome de sua fé. Judas também arrependeu-se do que tinha feito, mas o seu arrependimento degenerou em desespero e assim tornou-se autodestruição. E isso nos convida a ter sempre presente o que diz São Bento no final do fundamental capítulo V de sua Regra: “Nunca desesperar da misericórdia divina”.

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