Direto da Sacristia
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Morre o Papa de Alexandria

Postado em 19 março 2012por Erick Marçal

Uma ortodoxa copta chora a morte de Shenouda III, com o drama bem comum de algumas culturas do Oriente

O Egito chora a perda de um dos seus maiores líderes espirituais cristãos. O Papa de Alexandria e Patriarca da Predicação de São Marcos e de toda a África, Shenouda III, faleceu ontem, vitimado por complicações de saúde no pulmão e no fígado. Ele liderou a Igreja Ortodoxa Copta, não calcedoniana, e portanto sem comunhão com as Igrejas Ortodoxas tradicionais, por se negar a aceitar a doutrina das duas naturezas de Cristo (união hispostática), decretada pelo Concílio de Calcedônia em 451. Acusados pelos católicos romanos e pelos ortodoxos tradicionais de pregarem o monofisismo, em que Cristo teria apenas uma natureza, a divina, os não calcedonianos se afirmam no entanto miafisistas; a divindade e a humanidade de Cristo estariam unidas perfeitamente numa singular natureza. Ambas as posições cristológicas são consideradas heréticas pelos católicos romanos e pelos ortodoxos tradicionais.

A Igreja Ortodoxa Copta celebra segundo o rito alexandrino

A Igreja de Alexandria foi fundada por São Marcos Evangelista, ainda no primeiro século do cristianismo. Sofreu um sério cisma após o Concílio de Calcedônia; a maioria dos fiéis de língua grega decidiu permanecer fiel ao Patriarcado de Constantinopla e aceitar a doutrina da união hipostática, sendo fundada as atuais Igreja Ortodoxa Copta e  Igreja Ortodoxa Grega de Alexandria. No século XVIII, a Igreja Ortodoxa Copta sofreu uma nova divisão. A grande atividade missionária de franciscanos e jesuítas levou alguns clérigos e fiéis a buscarem a plena comunhão com o Papa e bispo de Roma. Em 1781, o papa Bento XIV erigiu o Vicariato Apostólico para os Católicos Coptas, sendo elevado à condição de patriarcado pelo papa Leão XIII, em 1895. Hoje, as três igrejas coptas reivindicam a sucessão da cátedra de São Marcos.

Os cristãos dos primeiros decênios possuíam o costume de chamar seus bispos pelo título “papa”, exprimindo o afeto, a  estima e a veneração por aqueles verdadeiros pais espirituais. A partir do século V, percebe-se a tendência a reservar este uso aos bispos que exerciam funções primaciais entre os demais. Com o tempo, a denominação foi se tornando singular do Bispo de Roma. No entanto, os ortodoxos coptas mantiveram esta tradição; já haviam se passado vários anos após o cisma.


Nazeer Gayed Roufail nasceu em 1923 na província egípcia de Assiut. Filho caçula de oito irmãos, o menino cresceu nas redondezas da igreja de sua pequena cidade, ajudando no ensino de crianças mais jovens. Graduou-se em História pela Universidade do Cairo, passando a lecionar em escolas do 2º grau durante o dia e a estudar Teologia à noite. Após concluir os estudos teológicos, foi professor durante cinco anos até aderir à vida monástica, passando a viver vários anos como eremita numa caverna, dedicando-se à oração, ao jejum e à penitência. Pediu para receber a ordenação sacerdotal e aderiu à vida comunitária. Em 1962, foi nomeado decano do Seminário Teológico Ortodoxo Copta e sagrado bispo pelo então Papa Cirilo VI, recebendo o nome de Shenouda. O número de alunos do seminário triplicou durante a administração do bispo Shenouda, que fora acusado de progressista e de promover campanhas subversivas, levando-o a ser suspenso. Entre suas iniciativas estavam a eleição e a aclamação popular de indivíduos para o presbiterado e para o episcopado, característica marcante de sua futura administração como papa.

Em 1971, já tendo sua suspensão remitida, foi eleito o 117º Papa de Alexandria, nove meses após a morte de seu predecessor, com o nome de Shenouda III. Alguns coptas afirmam que sua eleição contrariava o cânon 15 do Concílio de Niceia, que proíbe a transferência de bispos. Apesar de possuir o caráter episcopal, no entanto, não era titular de nenhuma diocese, o que provocou a aceitação de sua eleição.

No seu pontificado, Shenouda demonstrou-se um líder eficaz no diálogo com os regimes políticos instáveis do Egito. Passou três anos exilado no Deserto da Nítria por protestar contra o regime do presidente Anwar Sadat. Defensor dos interesses palestinos, o papa ameaçou excomungar qualquer fiel copta que visitasse Jerusalém, acusando-os de traição e alegando que as peregrinações não faziam parte das obrigações dos cristãos. Ele acusava Israel de haver se apropriado de um monastério pertencente à sua Igreja.

Sempre esteve ao lado de seus fiéis, na defesa da pequena comunidade copta, frequente vítima de atentados e de segregações por parte dos muçulmanos. Apesar disso, gozava do respeito das diversas lideranças muçulmanas locais. Também fora um ardente defensor do ecumenismo e da unidade dos cristãos. Defendia a indissolubilidade do matrimônio, afirmando que o divórcio  contrariava os ensinamentos do Evangelho.

Uma das últimas fotos de Shenouda III em vida:
viagem aos Estados Unidos da América para tratamento de sua saúde

O corpo do Papa Shenouda é velado revestido com os paramentos que lhes são próprios
Na Igreja de Roma, os restos mortais do Romano Pontífice são depositados em um ataúde para as exéquias papais

 Sacerdote copta incensa o corpo segundo os ritos litúrgicos


Sua morte se deu num contexto de duras mudanças sociais e políticas no Egito. As recentes vitórias dos partidos islâmicos nas eleições reacendeu o medo na comunidade cristã. Para muitos, resta a memória de um homem que era considerado pai e defensor dos desfavorecidos, advogado da tolerância e do diálogo religioso. Para outros, a esperança de um novo líder capaz de liderar e de defender os ortodoxos coptas, fartos de serem marginalizados.

Sacerdote copta se emociona com a morte de Shenouda III

O Papa Bento XVI, em mensagem enviada por seu Secretário de Estado, expressou suas condolências a quem chamou de “um grande pastor”. O funeral se dará na próxima terça-feira. Centenas de bispos coptas de diversos países são esperados. O corpo do patriarca, paramentado com roupas sacerdotais ricamente adornadas, revestido com uma mitra e um báculo de ouro, foi colocado sentado num trono de madeira esculpido na Catedral de São Marcos, no Cairo, sede atual da Igreja Ortodoxa Copta. Uma multidão de fiéis em desespero veio se despedir de seu pai espiritual. Já se contabilizam três mortes por asfixiamento ou pisoteamento e mais de quarenta feridos no meio da aglomeração dentro e fora da catedral. Em coro, ouve-se gritos de “amamos-te, Pai!”, “Deus te guarde!”, “e agora, o que será de nós?!”.

Que o Senhor conceda a ele o perdão dos pecados e lhe dê a sua visão beatífica.

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Traslado do corpo do Papa Pio XI

Aspecto dos ritos exequiais de Pio XI

Também o funeral do Papa de Roma já foi rubricado com particularidades que lembram um pouco a veneração do corpo de Shenouda III. O antigo rito exequial pontifício reza que, antes de ser sepultado, o corpo do Papa é exposto à última veneração na Capela do Santíssimo da Basílica Vaticana. Lá, seu pé era colocado entre as grades da Capela e beijando-o na cruz dourada do múleo papal, o povo romano venerava pela última vez o corpo de seu Bispo. Com o passar do tempo, o beijo foi substituído pelo toque com as mãos. No funeral do Papa João XXIII, nada disso mais foi visto, até porque ele mesmo abolira o beija-pés que deveria ser feito pelos Cardeais como sinal de reverência quando de sua coroação.

Grade da Capela do Santíssimo Sacramento da Basílica São Pedro no Vaticano
Na foto, o então Arcebispo Burke ingressa na procissão da missa na forma extraordinária
18 outubro 2009 

O Papa Pio XI foi o último Pontífice a ter em seus funerais todos os ritos da tradição romana: exposição do corpo na Capela Sistina (onde era velado antes da missa exequial), veneração na Capela do Santíssimo Sacramento, e “beijo” do pé. O seu imediato predecessor Pio XII teve o infortúnio de ser testado com um nova técnica de embalsamento e seu corpo explodiu em frente à Catedral do Latrão, quando de sua trasladação de Castel Gandolfo, onde falecera, para o Vaticano. Assim sendo, seus restos mortais não foram preservados da decomposição natural, mas esta foi até mesmo acelerada, e dizem que os guardas-suíços que custodiavam o corpo enquanto era velado, tiveram que ser reversados a cada 15 minutos, senão poderiam desmaiar devido ao péssimo odor. Final indigno para um homem como o qual o mundo teve poucos.

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