Dossiê FSSPX – Parte II
Dossiê FSSPX – Parte II
De Êcone às excomunhões
Depois de contar com o apoio do bispo onde estava situado o seminário de Êcone, o Cardeal Wright, então Prefeito da Congregação para o Clero, também elogiou os estatutos da Fraternidade.
Vista parcial do Seminário Internacional São Pio X
O primeiro da Fraternidade homônima
Mas, os tempos de paz duraram até o momento que a recusa ao Novus Ordo foi publicamente declarada por Mons. Lefebvre, fato que aconteceu em 10 de junho de 1971, seguida por todos os alunos do Seminário São Pio X de Êcone. O mesmo tinha sido feito pelos Cardeais Ottaviani, então Prefeito do agora renomeado Santo Ofício, e Bacci em carta dirigida a Paulo VI. Até ao ano de 1974, porém, a nova fraternidade recebe sinais seguros de sua aprovação no Vaticano, até mesmo permitir a sua ereção canônica em duas dioceses suíça e uma italiana. A partir de então, iniciou-se o período mais difícil para a Fraternidade. Seguem-se os fatos:
Naquele mesmo ano, entre os dias 11 e 13 de novembro, aconteceu uma visita apostólica ao seminário de Êcone presidida pelo Cardeal Garrone, então Prefeito da Congregação para a Educação Católica (para os Seminários e Institutos de Estudos). Medidas como essas são normais em institutos de formação sacerdotal e religiosa. Ainda mais tranquilizantes foram as conclusões do Visitador, embora tenha sublinhado que o Seminário não aplicara a reforma litúrgica, e nisso havia “algo de espírito anticonciliar”.
Nos dias 13 de fevereiro e 03 de março de 1975, Mons. Lefebvre foi interrogado por uma comissão papal formada por três cardeais acerca de sua declaração redigida e publicada criticando alguns pontos da visita apostólica. No dia 06 de maio, por fim, foi condenado pela mesma comissão em virtude de erros encontrados na Declaração, e o Cardeal Jean Villot ordenou ao Mons. Mamie, novo bispo de Friburgo, que retirasse a aprovação concedida por seu predecessor à Fraternidade São Pio X e que fosse, portanto, supressa. Em vão, Mons. Lefebvre apelou ao Tribunal da Assinatura Apostólica, pedindo ao seu Prefeito Cardeal Staffa que se realmente fosse encontrado algum erro em sua declaração, que a punição fosse a ele aplicação e não à Fraternidade, que estava fundada segundo a legislação canônica.
Em 29 de junho seguinte, Paulo VI confirmou a Mons. Lefebvre que aprovara tudo quanto tinha feito a Comissão cardinalícia.
Em 27 de outubro, o Cardeal Villot escreveu ao episcopado mundial dizendo que aos sacerdotes da Fraternidade não fosse concedida incardinação nas dioceses.
Em 26 de junho de 1976, Mons. Benelli, oficial da Secretaria de Estado e futuro Cardeal, prescreve a Mons. Lefebvre que não ordene sacerdotes sem permissão de seus bispos diocesanos. Três semanas antes de receber a comunicação epistolar, viajou por seis vezes a Roma onde lhe pediram que estabelecesse relações formais com o Vaticano. Foram inúteis as restrições de não ordenar mais sem a permissão dos Ordinários, pois três dias após prosseguiu com as ordenações previstas. Em 01 de julho, foi-lhe comunicada a suspensão a divinis do Arcebispo e dos sacerdotes recém-ordenados.
Audiência com Paulo VI: acusações mútuas e clima tenso
Em 11 de setembro de 1976, Lefebvre foi recebido por Paulo VI em seus últimos anos de vida. No início da audiência, o Papa estava alegre e receptivo. Depois, com o progresso e o rumo da conversa, seu ânimo foi mudando, e disse: “Você me condena! Você me condena! Me chama de modernista, de herege, de protestante! Não posso permitir isto. Você está fazendo um mal, não deve continuar, você está causando escândalo na Igreja”. E Lefebvre permanecia calado, até quando Paulo VI ordenou: “Fale, fale. O que você tem para dizer??”. E o Arcebispo começou a se explicar, enquanto Paulo VI estava nervoso, angustiado e com feições tristes.
Após pouco mais de dois meses de eleito Papa, João Paulo II concedeu-lhe uma audiência de 1h45 (fato raríssimo) em dezembro de 1978. Assim o que o viu, o Papa o abraçou, mas depois de ouvir os motivos de Lefebvre e seus questionamentos sobre o Concílio, repetiu exaltadamente: “A obediência! A obediência! A obediência! A obediência!”. A audiência, ao fim das contas, também foi tensa.
Não obstante, os anos avançaram e a formação sacerdotal na Fraternidade continuou normalmente. Mons. Lefebvre já contava com mais de oitenta anos e temia que, após sua morte, sem apoio e sem quem ordenasse seus sacerdotes, a Fraternidade desaparecesse. Por pensar assim, em abril de 1987 anunciou que sagraria bispos, mesmo sem autorização papal – que não possuíram, é verdade, jurisdição, pois só quem a concede é o Papa; mas administrariam os sacramentos da Confirmação e da Ordem. Contudo, como tentativa de aproximação e a fim de evitar um cisma, depois que o Cardeal Gagnon fez uma visita canônica à Fraternidade nos fins de 1987, em carta em abril do ano seguinte ao então Cardeal Ratzinger, o Papa João Paulo II reconheceu as disposições de Mons. Lefebvre. Portanto, seguiu-se uma série de encontros naquele mesmo mês com teólogos e canonistas da Congregação para a Doutrina da Fé e da referida Fraternidade. O resultado foi um acordo, e a assinatura de um protocolo em 05 de maio. Neste, Mons. Lefebvre declarou em seu nome e no da Fraternidade que prometia fidelidade à Igreja Católica e ao Romano Pontífice, cabeça do Colégio episcopal (reconhecendo, portanto, a colegialidade episcopal aprovada no Vaticano II); aceitava a doutrina conciliar contida no número 25 da Constituição dogmática “Lumen Gentium” do Vaticano II sobre o magistério eclesiástico e a adesão que lhe é devida; empenhava-se em estabelecer comunicação com a Sé Apostólica, evitando qualquer polêmica sobre os documentos conciliares e as reformas posteriores; reconhecia a validade da Missa e dos Sacramentos celebrados com a intenção requerida e segundo os ritos das edições típicas, promulgadas por Paulo VI e João Paulo II; reconhecia e respeitava a disciplina comum da Igreja e as leis eclesiásticas, especialmente aquelas contidas no Código de Direito Canônico de 1983, salvo as particularidades concedidas à Fraternidade. Na segunda parte do texto, era previsto que a Fraternidade seria constituída como sociedade de vida apostólica de direito pontifício e com certa isenção ao culto público, à cura das almas e às atividades apostólicas; seriam usados os livros litúrgicos anteriores à reforma litúrgica conciliar; uma comissão especialmente constituída mediaria as relações com os diversos dicastérios da Santa Sé; e seria sugerido ao Santo Padre um nome dentre os membros da Fraternidade para a eleição de um bispo próprio, que não seria o superior-geral.
Tudo aparentava acontecer bem e evoluindo para o fim daquele problema que já durava alguns anos. Contudo, em maio de 1988, Mons. Lefebvre escreveu ao então Cardeal Ratzinger exigindo que a sagração episcopal de um membro da Fraternidade fosse efetuada até o dia 30 de junho seguinte, acrescentando que se o seu pedido não fosse aceito, ele mesmo sagraria por dever de consciência. O Cardeal respondeu pedindo que reconsiderasse a decisão. No fim do mesmo mês, os dois se encontraram em Roma e foi comunicado a Mons. Lefebvre que o Papa nomearia um bispo da Fraternidade para que sua sagração fosse no dia 15 de agosto seguinte, clausura do Ano Mariano. Em carta posterior, o Arcebispo voltou a insistir na data de 30 de junho, e voltou a ameaçar que, do contrário, ele mesmo ordenaria por conta própria.
Bispos ilicitamente sagrados por Mons. Lefebvre e Dom Castro Mayer, da esquerda para a direita:
o suíço Bernard Fellay, em seu segundo mandato como Superior-geral da Fraternidade;
o cântabro Alfonso de Galarreta, reitor do seminário argentino de La Reja,
o franco-provençal Bernard Tissier de Mallarais; e o inglês Richard Williamson
Em 09 de junho, o próprio João Paulo II enviou pessoalmente uma angustiosa carta desejando impedir o ato cismático, nestes termos: “Não somente o convido a isto [renunciar o projeto de ordenar bispos sem mandato da Sé Apostólica], mais ainda, peço-lhe pelas chagas de Cristo nosso Redentor, em nome de Cristo, que na vigília de sua Paixão orou por seus discípulos “para que todos sejam um”. Mas, o pedido do Papa não foi suficiente para desencorajá-lo do que aconteceu poucos dias depois. De fato, no dia 30 de junho, assistido pelo brasileiro Dom Antônio Castro Mayer, então Bispo emérito de Campos (só por um bispo, portanto, enquanto que a tradição pede dois co-sagrantes, embora que isso não invalide nada), Lefebvre ordenou quatro membros como bispos: Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallarais, Richard Williamson e Alfonso de Galarreta. Todos, válidos bispos sagrantes e ilícitos bispos sagrados, incorreram em excomunhão “latae sententiae” do cânon 1382 do Código de Direito Canônico de 1983, e reservada à Sé Apostólica (única competente a absolver da pena).
A sanção canônica foi oficialmente comunicada em 02 de julho, mediante o Motu proprio “Ecclesia Dei Adfflicta”. A Santa Sé acolheu os seminaristas e sacerdotes que se dispersaram da Fraternidade após consumado o cisma, e erigiu a Fraternidade Sacerdotal São Pedro. João Paulo II também erigiu o Instituto de Cristo Rei e Sumo Sacerdote e se dignou ele mesmo ordenar sacerdote o genovês que até hoje preside o mesmo Instituto, Mons. Gilles Wach. Foi a maneira encontrada para combater o cisma e atender tanto aos seminaristas, padres e fiéis católicos que têm a sensibilidade litúrgica do rito tradicional.
Enquanto isso, a Fraternidade apresentou argumentos, baseados em cânones do Código de 1983, entre eles que o estado de necessidade visto pelo Arcebispo invalidava a pena que seria aplicada em circunstância contrária; que o cisma só seria consumado se se quisesse constituir uma hierarquia paralela à oficialmente eleita e disposta pela Igreja, que aconteceria se também pretendesse conceder jurisdição, que se classificaria, portanto, em usurpação do ofício papal; e que, finalmente, o cisma não acontece simplesmente por desobediência, pois esta é apenas o não reconhecimento de uma ordem dada por uma autoridade, e não a dúvida da própria autoridade que formulou a ordem.
Justa ou não para eles, o fato é que as excomunhões foram lançadas e foi iniciado o período mais recente dessa história.