Muito além do “pano”
Muito além do “pano”
A importância espiritual dos paramentos e insígnias além de sua estética
Queixa-se de que, ao entrar no coro para a salmodia, ao dirigir-se para celebrar a missa,
logo mil pensamentos lhe assaltam a mente e o distraem de Deus.
Mas, antes de ir ao coro ou à missa, que fez na sacristia,
como se preparou, que meios escolheu e empregou para fixar a atenção?
(Sermão proferido no último sínodo por São Carlos Borromeu)
Feliz e evidentemente, estamos vivendo em outro tempo. Embora ainda vivo, o pensamento de uma fé socialmente instrumentalizada e, com isso, desprovida em grande parte de seu caráter transcendental, perde sua força depois de décadas determinando o que era bom ou não para os fiéis e, pior, para as vocações sacerdotais e religiosas. Não obstante o empenho de tantos homens, e o fato disto ser também o resultado do enfado de anos de um relativismo com poucas exceções, o pontificado do Papa Bento XVI foi um impulso e vigor ao novo movimento litúrgico que hoje testemunhamos.
A fila de acólitos com as vestes pontificais para a paramentação do Cardeal Burke no altar
Com esta cerimônia de paramentação, os ritos já começam antes mesmo das celebrações.
Mas ainda não podemos nos dar por satisfeitos. Há – diríamos – outras linhas nascidas ou influenciadas por esses novos tempos que, embora tenham um ou mais pontos em comum, divergem entre si em aspectos cruciais: há quem execute as rubricas apenas por ritualismo (fazer em virtude da lei litúrgica somente); também há quem só deseje se vangloriar por meio da beleza litúrgica, usurpando o lugar de Nosso Senhor, e, por fim, há quem faz da Liturgia apenas um mero barroquismo, sem que dela se colham bons e grandes frutos, como é possível quando se desvia de seus propósitos: louvor, adoração, expiação dos pecados e ação de graças.
Particularmente, não concordamos com o reprovável termo “panos” para se referir aos paramentos litúrgicos, que denota um pauperismo em significado e nunca deveria ser relacionado às alfaias, mas se tornou usual devido à vulgaridade com que é usado. Mas, há quem o use para demonstrar seu desprezo pelas vestes sacras, como quem afirma que não passam de “panos”, sem significado, sem importância, sem ser meio catequético pelo uso aos fiéis e até mesmo a quem os usa.
Em julho de 2009, o “Salvem a Liturgia!” publicou um artigo muito claro e sincero sobre a chamada “Pastoral do Pano”, falando sobre frágil linha que separa os vaidosos e superficiais que se aproveitam da Liturgia como um lugar de maravilhas para o seu ego e os que a desprezam quase que totalmente – só restando as fórmulas que recitam e os gestos que executam para a válida dos sacramentos que celebram.
Mais lamentável e – ao mesmo tempo – ridícula ainda é a justificativa daqueles que, falando de seu gosto litúrgico “sóbrio” e “centrado”, ridicularizam os paramentos que fazem uso de rendas e decorações florais. Acreditar em fúteis argumentos como estes e outros é o mesmo que deixar de usar paramentos róseos unicamente pela moderna e imperfeita ligação entre esta cor e o seu uso exclusivo pelas mulheres.
Cardeal Burke se paramenta com o auxílio de Franciscanos da Imaculada
Como forma de defesa à importância dos paramentos mas também para refutar quem os despreza, apresentamos a seguir as orações que acompanham a paramentação das vestes episcopais e sacerdotais (estas estão todas inclusas naquelas, mas aquelas superam em número a estas, de modo que, obviamente, os sacerdotes não se paramentam como bispos). A reforma litúrgica do Vaticano II, embora tenha excluído a obrigatoriedade de a vestição dos paramentos ser acompanhada de cada respectiva oração, não proibiu no Missal de Paulo VI o fato de rezar mais especificamente enquanto se paramenta. Portanto, as oração a seguir são do rito antigo: o problema não é não ter a sensibilidade litúrgica (como se refere Bento XVI) do usus antiquior, mas reprová-la e desprezar os bens que sobrevêm dela quando é virtuosamente vivida, tal como acontece àqueles que de reta intenção são liturgicamente sensíveis a outras espiritualidades. Enfim, na reflexão sobre as orações que acompanha a vestição de cada paramento, veremos que há por trás algo de espiritual muito maior e mais importante do que a aparente ostentação ou luxo de quem só assim interpreta:
As cáligas eram os calçados dos militares romanos e símbolo da expansão do Império, feitas de couro e algumas vezes até mesmo os escravos as calçavam; mas, usualmente, eram do vestuário dos legionários até os centuriões. A Igreja preservou o modelo, embora decorado: botas que chegam até a metade das pernas e que é fechada por fios atados.
Ao chegar à sacristia, o Bispo se desfaz dos seus sapatos civis e enquanto as calça, diz: Calçai, Senhor, os meus pés na preparação do Evangelho da paz e protegei-me à sombra de Vossas asas.
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Depondo a mozzetta: Livrai-me, Senhor, do homem velho com as suas obras e costumes, e revesti-me do homem novo, criado segundo Deus na justiça e santidade da verdade.
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Lavando as mãos: Dai, Senhor, força às minhas mãos para lavar toda a iniquidade, e poder para servir-Vos sem culpa no corpo e na alma.
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O amito aparece no século VIII para cobrir a cabeça e pescoço do Celebrante e ministros sagrados, e, passando debaixo dos braços, talvez para apertar a alva ao peito, sobre a qual se veste. Quando no século X apareceu o barrete, o amito passou a cobrir unicamente o pescoço. Contudo, em [ritos de] certas ordens religiosas (que, na maioria, não tem barrete), conserva o uso primitivo do capuz. Usa-se por baixo todas as vezes que esta se vestir. Também se põe imediatamente sobre o roquete ou sobrepeliz todas as vezes que se deva vestir, sem a alva, a dalmática, pluvial ou casula, como para assistir ao Bispo na Missa e Vésperas Pontificais.
Com o amito: Ponde, Senhor, sobre a minha cabeça o capacete da salvação para rejeitar todas as tentações do diabo e armadilhas do inimigo.
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A alva era a túnica interior que todos os romanos usavam no século VI. Deve ser trazida nas Missas, nas Procissões solenes e nas Exposições solenes do Santíssimo Sacramento.
Enquanto veste a alva: Purificai-me, Senhor, e limpai meu coração, para que como aqueles que lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro, possa eu desfrutar de alegrias eternas.
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O cíngulo passou a apertar aos rins a alva depois do século VIII. Deve ser branco ou da cor dos paramentos.
Enquanto se cinge com o cíngulo: Cingi-me, Senhor, com o cíngulo da fé e da virtude da castidade, e apagai de meus membros o ardor da concupiscência, para permanecer sempre em mim a força da castidade.
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A cruz peitoral, cujo costume é de carregar relíquias dos Mártires, tem forma latina e seu uso foi herdado dos primeiros cristãos.
Depois de beijar a cruz peitoral e recebê-la: Senhor Jesus Cristo, dignai-Vos proteger-me de todas as ciladas do inimigo com o sinal santíssimo de Vossa Cruz, e dignai-Vos conceder a mim, Vosso indigno servo, que assim como levo em meu peito esta Santa Cruz com todos os Vossos Santos, sempre tenha em minha mente a memória da Paixão e as vitórias dos Mártires.
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A estola era, segundo Batiffol, era uma peça de tecido de linha, terminada com franjas, da qual os homens se serviam para resguardar o pescoço do frio. Era aberta por diante e ornada duma orla de bordado precioso, que dava a volta ao pescoço e descia até os pés. Depois de adotada no vestuário litúrgico, como insígnia de dignidade (nas liturgias oriental, visigótica e galicana no século VI, e na liturgia romana no século IX), para poder ser revestida por baixo da dalmática e da casula, a estola perdeu a sua parte mais importante – a túnica, e conservou apenas o bordado (orarium). Deve ter uma cruz grega no meio e nas duas extremidades. Os sacerdotes usavam-na cruzada ao peito debaixo da casula já que a cruz peitoral era (e continua sendo reservada aos Bispos); contudo, a usavam pendendo paralelamente ao peito, tal como os Bispos, quando sobre a sobrepeliz.
Ao vestir a estola: Dai-me, Senhor, a estola da imortalidade que perdi com a desobediência de meus pais, e ainda quando dos Vossos sagrados Mistérios me aproximo sem ser digno, com este ornamento eu mereça a alegria eterna.
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A tunicela era um vestido comprido, estreito, com ou sem mangas, que os personagens oficiais de Roma, no século V, traziam debaixo da poenula (da qual derivou a casula litúrgica) ou da toga.
Ao vestir a tunicela: Que o Senhor me revista com a túnica do gozo e as vestes da alegria.
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A dalmática, a princípio vestido de escravos ou vestido interior, foi no século II adotada como vestido exterior. Vestia-se por cima da túnica inferior e por baixo da poenula ou da toga. Desde o fim do século V, foi adotada pelo Papa como insígnia própria e depois concedida por ele como distinção honorífica aos bispos e presbíteros da Igreja Romana e mais tarde aos de outras Igrejas. Todavia, este privilégio foi-se estendendo aos diáconos das diversas Igrejas. Hoje só o Bispo nas Missas pontificais se conserva fiel ao costume – antigamente comum também aos sacerdotes, de vestir a tunicela e a dalmática por baixo da casula. De resto, por um desejo de simetria – pouco respeitador da tradição e das regras litúrgicas -, a tunicela e a dalmática acabaram por se tornar iguais, indistinguíveis. Contudo, alguns modelos se preocupam em dar à dalmática duas faixas horizontais (segmentae) que unem as duas verticais (claves). A tunicela permaneceria, portanto, com duas verticais e só uma horizontal.
Ao vestir a dalmática: Revesti-me, Senhor, com a veste da salvação e da alegria, e rodeai-me com a dalmática da justiça.
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As luvas (chirotecas) são de seda, da cor litúrgica e com bordados nas costas – uma insígnia de distinção, em uso desde a época carolíngia. O Bispo usa-as até o ofertório, exceto na Sexta-feira Santa e na Missa dos Defuntos.
Ao calçar as chirotecas: Envolvei, Senhor, minhas mãos com a pureza do Homem novo que desceu do céu, para que, como seu amado Jacó, que com as mãos cobertas com pele de cabra, pediu a bênção paterna, uma vez oferecidas a seu pai comida e bebida muito agradáveis, também a oferenda da salvação doada por nossas mãos mereça a bênção da Vossa graça. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, que em semelhança pela carne pecadora, ofereceu a Si mesmo por nós.
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A casula era primitivamente um manto de lã ou de couro, em forma de saco ou de sino, destinada nas viagens a resguardar do mau tempo. Era a poenula, adotada pelos romanos no século II. Tinha só uma abertura por onde se passava a cabeça, e, caindo dos ombros até aos pés, envolvia todo o corpo, simulando assim uma pequena casa (casula). Ampla e majestosa, flutuava ao mais ligeiro movimento do corpo, o que lhe fez dar o nome de planeta (do grego, andar errante). No século VI, o povo abandonou este vestido, mas o clero continuou a usá-la. Pouco a pouco, os membros da Hierarquia inferior renunciaram a um ornamento tão caro, que ficou reservado aos presbíteros e aos bispos. A sua forma variou bastante a partir do século XIII, devido a sucessivas reduções que, sob pretexto de facilitar os movimentos do Celebrante, transformaram a ampla, ágil e majestosa planeta na inestética, desgraciosa e pesada casula cujo modelo conhecemos. Há o costume de tirá-la quando o sacerdote prega do púlpito, porque no rito antigo o sermão não é considerado parte propriamente integrante da Missa, logo, não é necessária a casula como paramento para tal. O costume de suspender a parte da casula que cai das costas do Celebrante durante as Elevações, antes do significado teológico, tem o sentido prático de ajuda no trato do paramento originado quando este era mais amplo.
Ao vestir a casula: Senhor, que dissestes “Meu jugo é suave e o meu fardo é leve”, concedei-me que eu o leve de tal modo que possa obter a sua graça.
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A mitra primitivamente era uma touca branca, de forma alongada, mais ou menos cônica e sem nenhum ornato. No século XII, em Roma, toma a forma duma coroa (regnum), e vai sofrendo depois, no decorrer dos séculos, várias modificações. O mais antigo documento da sua concessão aos Bispos data do século XI. Segundo Tomás de Aquino, as duas pontas que formam a mitra significam o Antigo e o Novo Testamentos; as ínfulas, que descem sobre as espáduas, expressam o resplendor que saía da cabeça de Moisés após ter a visão de Deus, o brilho da sabedoria dada aos bons pastores, como prometido ao profeta Jeremias (3, 15). Há dois bons e detalhados artigos sobre ela: um no Salvem a Liturgia! e na Wikipedia.
Ao impor a mitra: Imponde, Senhor, em minha cabeça a mitra e o capacete da salvação, para que não caia nas ciladas do antigo inimigo e de todos os demais adversários.
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O anel deve ter uma pedra preciosa respectiva à dignidade do Prelado. No caso dos Bispos, é o símbolo da união com a sua Igreja. Segundo alguns, é diferente do anel com que os antigos Bispos selavam as suas cartas, tal como acontece ao Papa com o Anel do Pescador.
Ao impor o anel: Adornai, Senhor, os dedos do meu coração e de meu corpo, e envolvei-me sete vezes com o Espírito santificador.
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Na mão esquerda do Cardeal Burke, o manípulo
O manípulo, como o seu nome indica (mappula, sudarium), era o lenço de cerimônia que fazia parte do vestido do aparato dos romanos. Servia para cobrir o rosto, limpar o suor, transmitir ordens, dar o sinal do princípio dos jogos, aclamar os vencedores. O presidente da assembleia litúrgica adotou-o, e os ministros imitaram-no. Apesar de simples adorno hoje, a oração que acompanha a sua paramentação o enche de significado espiritual.
Ao vestir o manípulo: Fazei, Senhor, que eu mereça levar o manípulo com espírito humilde, para que com alegria tenha eu parte entre os Santos.
Não há oração que o Bispo reze enquanto recebe o báculo e se destina à procissão de ingresso.
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Usamos comentários aos paramentos de Dom António Coelho, monge beneditino português já falecido.
É possível ver, primeiramente pelo significado de cada peça e depois pela oração que acompanha a paramentação de cada uma, que nada na Liturgia é sem sentido. É evidente que os frutos espirituais da celebração dos Sacramentos dependem da vida do ministro, contudo, é inegável que os sinais (sonoros, visuais e sensíveis) da Liturgia muito ajudam na espiritualidade do ministro ordenado que os valoriza quando celebra os Sacramentos. Imagine-se, portanto, um sacerdote que unicamente tira seus paramentos do armário e não recita nenhuma oração (nem de paramentação nem aquelas contidas até no Missal de Paulo VI como fórmulas de intenção para a celebração da Missa). Agora, imagine-se um sacerdote que se prepara adequadamente: em estado de graça (requisito para a liceidade do sacramento), rezando a intenção do que celebrará e preparando o espírito pelas belíssimas, explicantes e profundas orações de paramentação… Qual deles colherá mais frutos de seu ministério? Por isso, dizemos: a beleza da Liturgia ensina e santifica quem a vive com reta intenção.
No vídeo a seguir, vemos Mons. Mario Oliveri, bispo de Albenga-Imperia, se paramentando na sacristia para a celebração da Missa. O Bispo mal toca nos paramentos: quem o ajuda quase em tudo são os diáconos e o mestre de cerimônas. É interessante se observar a beleza desta cerimônia que também pode ser feita as celebrações segundo os livros litúrgicos de Paulo VI, com as devidas e necessárias adaptações (no referente aos paramentos). Contudo, a filmagem termina antes da imposição das luvas, do anel e da mitra.
Agradecimentos a Wescley Andrade pelo envio da tradução portuguesa das orações de paramentação.