Sobre os sinos (I)
A biblioteca do Seminário de Olinda é raríssima em conteúdo e vastíssima em número. Nela estão livros antigos nos idiomas mais conhecidos. É de uma sensação indescritível andar entre suas prateleiras e voltar no tempo, sentindo a textura das páginas, quase todas já amareladas, e aquele cheiro próprio de livros envelhecidos pelo tempo – e, estando lá o conhecidíssimo ácaro, acho que foi a causa de um resfriado que me sobreveio nestes dias.
Eu já folheei vários livros dessa Biblioteca. Dentre eles, gostei mais de uma série de publicações que compendiam os Boletins Mensais do governo metropolitano do Ex.mo Dom Miguel de Lima Valverde, arcebispo de Olinda e Recife entre os anos de 1922 a 1951, de quem ainda restam muitas obras. Nessas publicações, a editoria comunicava Atos da Santa Sé, as atualizações da Cúria Metropolitana, as atividades do Sr. Arcebispo e artigos que versavam desde tratados teológicos até prática pastoral. Sempre – como é de se esperar – os textos sobre Teologia e Liturgia me impressionaram com seu conteúdo de peculiar importância, que aumentavam ainda mais a curiosidade em saber mais. Passado algum tempo desde que conheci a riqueza intelectual presente nesses Boletins, há poucos dias pensei em transcrever alguns escolhidos e publicá-los aqui. E isso começarei a partir de hoje, com uma frequência – espero – semanal. Confesso que, não obstante a idade do conteúdo, ainda hoje ele permanece atual ao saber que nem na Igreja só permanece o antigo, nem tudo tem que ser de tempo recente; é – deve ser – uma harmoniosa convivência entre os dois, como bem tem destacado o Papa Bento XVI. Quem somos nós para contestarmos a Tradição da Igreja, que já existia desde muito antes de nascermos e é muito maior do que nós para que seja submetida ao nosso pobre e falso julgamento de dispensabilidade? E, mais: está fundada em verdadeiros valores, que muitas vezes solidificaram a fé dos que nos antecederam nela! Por não ser estática, a Tradição é viva, com a perpetuação do que nos precede e não com o desejo de fazer o novo em tudo e só a este garantir credibilidade.
Portanto, com algumas alterações para atualizar o sentido das palavras – mas sem prejuízo algum ao conteúdo -, ponho nas mãos dos caríssimos leitores este magnífico tesouro que nos ajudará a entendermos mais sobre vários assuntos de nossa fé e – mais uma vez – demonstrará como ela é riquíssima em conteúdo e sentido, com o novo e o velho sempre, sempre, sempre. Inauguro, como o faço agora, uma nova categoria (Precioso Depósito, título que define o que acho dos textos) onde estará este rico conteúdo. Começarei com o texto que mais conquistou a minha atenção e que me fez venerar ainda mais o objeto que nele é tratado. O artigo a seguir segue o modelo de muitos que serão publicados: origem como primeira parte sua, evolução e conclusão. No presente texto, a conclusão será uma ampla explicação sobre a bênção dos sinos segundo o usus antiquor, e para os amantes da Liturgia: não se arrependerão de aguardar a conclusão deste assunto.
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OS SINOS
Capítulo I – Origem e uso
(publicado originalmente na edição maio-julho 1932)
Pe. Thomás Gonçalinho
Um das campainhas presas à orla da túnica dos sacerdotes judeus
O uso dos sinos, na sua forma mais simples de pequenas campainhas, remonta a uma alta antiguidade. Não podemos, contudo, determinar a época de sua invenção.
Ilustração de um Sumo Sacerdote judeu.
Foi ordenado por Deus que na orla de sua túnica de púrpura violeta (cf. Ex. 28, 33ss)
houvessem romãs intercaladas com campainhas de ouro, que sinalizariam
com um agradável som o serviço divino e ainda indicariam que o sacerdote
não tinha morrido e o sacrifício tinha sido aceito
É certo que elas já existiam no tempo de Moisés, pois o Senhor mandou-lhe que colocasse na orla da túnica de Aarão um certo número de campainhas de ouro (cf. Êxodo XXVIII, 33-34). Têm-se encontrado destas campainhas em sepulturas chamadas pré-históricas.
Eram conhecidas de quase todos os povos da antiguidade, como demonstram as descobertas arqueológicas. Escritores antigos, como Plutarco, Luciano – entre os gregos, Plínio, Marcial, Suetônio, Sêneca – entre os latinos, falam-nos das campainhas.
O uso que delas faziam era muito variado. Marcial faz menção das campainhas que anunciavam a abertura das termas (Luciano). Nalgumas partes, o toque da campainha indicava a abertura do mercado do peixe (Plutarco). Eram as campainhas que, pela manhã, davam o sinal de despertar (Luciano).
Era costume, e este costume ainda subsiste entre nós, pendurarem uma ou mais campainhas ao pescoço dos animais (São Paulino de Nola). Os pagãos atribuíram-lhes a virtude de afugentar os espíritos maus e, por isso, usavam-nas como amuletos, talismãs, costume supersticioso de que ainda se encontram vestígios entre os fiéis dos primeiros tempos (São João Crisóstomo).
A este e outros usos profanos, devem-se ajuntar os usos religiosos. Conta Porfírio que havia na Índia uma espécie de religiosos que se reuniam ao toque de uma campainha para orar. Em Roma, nas festas de maio celebradas pelos Arvales, eram usadas no culto dos lamures, nos funerais etc. Suetônio conta que Augusto rodeou de campainhas o tímpano do templo de Júpiter. Em antigos templos pagãos, encontram-se campainhas como ex-votos.
Mas foi sobretudo do Cristianismo que as campainhas (e, depois, os sinos) receberam um uso quase exclusivamente religioso – convocar os fiéis aos atos de culto.
O modo de convocar os fiéis para os ofícios divinos não foi sempre o mesmo. Santo Inácio Mártir manda que os fiéis sejam chamados cada um em particular (Carta a Policarpo). Isto não era difícil em tempo e lugares em que os fiéis eram pouco numerosos. Mas, com o aumento dos cristãos, este modo de convocação tornava-se praticamente impossível. Anunciavam-se, então, ao domingo os dias, horas e lugares das reuniões que se houvessem de celebrar durante a semana. E a prática de chamar pessoalmente a cada um restringiu-se aos retardatários, os quais eram chamados pelos cursores, proecones ou monitores.
Era natural que estes usassem algum instrumento que, se não era campainha, fazia as suas vezes. Segundo a Regra de São Pacômio, os monges eram convocados ao som da trombeta. Noutros mosteiros, batia-se à porta da cela de cada religioso com um martelo (Cassiano). No mosteiro de Santa Paula, em Belém, as religiosas eram chamadas ao canto do Alleluia (São Jerônimo).
Mas, já no século VI se encontram documentos que atestam o uso dos sinos nos mosteiros. Destes, o mais antigo é talvez a Regula ad Virgines de São Cesário de Arles, escrita por volta do ano 513. Dos mosteiros, os sinos passaram, em breve, para as igrejas paroquiais, tanto que Gregório de Tours afirma que o seu uso era já frequente no século VI na Gália. Quanto às ocasiões em que se tocavam, transcrevemos aqui uma passagem de Dom Leclercq: “Nos mosteiros, o sino regulava e marcava, de uma maneira que todos compreendiam, os exercícios comuns, desde o despertar, ofício, a refeição e o deitar, até aos menores incidentes da observância e às circunstâncias excepcionais da vida”. À hora da morte, São Sturmio de Fulda (n.e. monge alemão do século VIII) mandou tocar todos os sinos do mosteiro para convidar os irmãos, assim avisados, a porem-se em oração. À nona (n.e. hora do Ofício Divino correspondente às 9h), Begu (n.e. santo do século VII) tem conhecido da morte da abadessa Hilda (n.e. de Whitby, santa falecida em 680) pelo modo especial do toque dos sinos que chega até ele do mosteiro vizinho. Nas igrejas paroquiais, o sino convocava os fiéis aos ofícios do dia e da noite: [tradução nossa do latim] Que todos os sacerdotes competentes soem o sino das igrejas nas horas do dia e da noite, para, em seguida, celebrem os sagrados ofícios divinos e ensinem as pessoas a adorarem a Deus (n.e. Capitularia de Carlos Magno, elenco de leis da época carolíngia).
Talvez se tocassem os sinos em muitas outras ocasiões. Por ocasião do assalto de Sens (n.e. comuna francesa) por Clotário II, o bispo São Lupo mandou tocar o sino da igreja de Santo Estevão; e parece que, pelos fins do século VIII, se tocavam os sinos para afugentar as tempestades e o granizo.
Estes diferentes usos dos sinos eram indicados em inscrições neles gravadas. É muito comum a seguinte: “Laudo Deum verum, plebem voco, congrego clerum, defunctos ploro, pestem fugo, festa decoro”.
Eis mais algumas definições:
“Funera plango, fulmina frango, sabbato pango;
Excito lentos, dissipo ventos, paco cruentos”.
Outra:
“Convoco, signo, noto, compello, concino, ploro,
Arma, dies, horas, fulgura festa rogos”.
[n.e.] E, a gravação no sino do Mosteiro beneditino de Maredsous, reza:
“Jubilans, sacra festa cano;
Suplex longo procellas pello:
Plorans alumnis stratis bello
Amicis, monachis, pacem rogo”.
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Hoje, dá-se o nome de “tintinnabulum” à esta insígnia concedida
pela Santa Sé às igrejas basílicas
Os sinos receberam, no decorrer dos tempos, vários nomes. O mais antigo que os latinos lhes deram tintinnabulum (às vezes, tintinna) nome genérico, mas que designava antes as campainhas pequenas. Os gregos chamavam-nas kódones (singular: kódon) e assim os vigias noturnos eram chamados kodonóphoroi por trazerem uma campainha.
Mas o nome próprio latino que serve para designar os sinos é – signum, assim chamado porque servia para dar o sinal – signum. Este nome encontra-se já no primeiro quarto do século VI. Na Regula ad Virgines de Cesário de Arles (escrita cerca do ano 513), lê-se: Quae, signo tacto, tardius ad opus Dei venerit. Na Regra de São Bento (escrita entre 529 a 543), lê-se: Ad horam divini officii, mox ut auditum fuerit signum, summa cum festinatione curratur (capítulo 43). Este nome era muito usado entre os visigodos e encontra-se ainda hoje no Pontificale Romanum, parte II, título: De Benedictione Romanum, parte II, título: De Benedictione signi vel campanae.
Campana é outro nome porque são designados os sinos. Este é derivado, provavelmente, de Campânia, região da Itália, ou por que foi lá que se começaram a fundir os sinos de maiores dimensões ou em razão da boa qualidade do seu bronze, célebre na antiguidade – aes campanum (n.e. cobre campanês). Este nome parece já generalizado no século VI. Encontra-se também o nome campanum, porém menos frequentemente.
No norte da Gália e na região romana, empregava-se a palavra clocca ou glogga. Assim lemos na vida de São Sturmio (780) [n.e. como dito anteriormente] que à hora da morte mandou tocar todos os sinos (glogga) do mosteiro. E, na de São Bonifácio, lê-se: Ecclesiae cloccum, humana non contigente manu, commotum est.
Outro nome é o de nola, já conhecido no século II e que servia para designar os sinos de pequenas dimensões. Há quem o faça derivar de Nola, cidade da Campânia, porém não parece admissível, pois a síbala no de nola (sino) é breve, ao passo que a de Nola (cidade) é longa. Wetzer, com mais probabilidade, deriva-a do céltico noll, nell, donde vem o inglês knoll, dobras os sinos.
Os sinos são vasos sagrados, destinados ao culto divino. Como tais, recebem uma bênção especial, que, pela semelhança que tem com o rito do Batismo, é vulgarmente chamado Batismo dos sinos. Esta designação encontra-se já no século VIII. É, todavia, uma designação imprópria. E não se deve, de modo algum, confundir o sacramento do Batismo com a bênção dos sinos, que é um sacramental. De resto, a Igreja nunca admitiu nos seus livros a designação de Batismo, mas sim a de Bênção. E tão antigo, interessante e instrutivo é o Ritual desta Bênção que dele nos ocuparemos num segundo artigo.