Sobre os sinos (II)
No artigo passado, vimos que herdamos dos judeus o uso dos sinos – eles os usavam nos paramentos sacerdotais para sinalizar com agradável melodia o serviço litúrgico e indicar a sobrevivência do Sumo Sacerdote, que não ingressara impuro no Sancta Sanctorum.
Os antigos escritores relatam o uso de campainhas na vida cotidiana, como na abertura dos banhos, no início dos trabalhos mercantis, e até mesmo para acordar as pessoas.
Somente os cristãos, depois dos pagãos utilizarem os sinos, deram-lhes um uso religioso quase exclusivo. Das igrejas aos mosteiros, os fiéis tocavam os sinos para congregar a assembleia nos cultos sagrados. Ainda há registros de seu uso para avisar sobre invasões a cidades e sobre desastres meteorológicos – costume tanto de ordem civil, mais sobretudo de ordem espiritual, acreditando que os termos das fórmulas proferidas quando de sua bênção eram eficazes para afastar esses males.
Sobre a bênção que, segundo o usus antiquor, envolvem os sinos as palavras e os gestos executados pelo ministro que preside, nos deteremos na continuação deste artigo. A beleza das fórmulas litúrgicas enche – é quase que inevitável – de profunda emoção e piedade o coração daqueles que são sensíveis à sabedoria e grandiosidade da Liturgia da Igreja; e os gestos, ah! esses enriquecem ainda mais as cerimônias e marcam com sinais visíveis as orações ditas muitas vezes em sincronia com eles. Identificamos nessas cerimônias seguintes uma profunda ligação com os acontecimentos veterotestamentários ocorridos ao Povo da Antiga Aliança, seja na anamnese dos episódios bíblicos correlacionados ao uso dos sinos, seja na recitação dos Salmos penitenciais e de louvor. As orações determinam magistralmente o destino dos sinos que ora são abençoados.
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OS SINOS
Capítulo II – “Batismo” ou Bênção dos Sinos
Parte I
(publicado originalmente na edição de maio-julho 1932)
Pe. Thomás Gonçalinho
“É conveniente que haja em cada igreja um ou mais sinos para convocar os fiéis aos ofícios divinos e outros religiosos. E estes sinos das igrejas devem ser consagrados ou benzidos segundo os ritos que se encontram nos livros litúrgicos aprovados” (Codex Iuris Canonicis, cânon 1169 § 1 e 2 e Pontifical Romano), pois a Igreja quer que todos os objetos destinados ao culto divino recebam uma bênção especial que os separe das coisas profanas e neles imprima um caráter sagrado.
Esta bênção dos sinos é vulgarmente conhecida pela designação de batismo dos sinos, expressão que aparece já em autores do século X. Assim o monge Letaldo conta na vida de S. Máximo de Micy (+530) que o venerável Anno batizou segundo o costume geral um sino que mandou fundir para uso do mosteiro (Das atas da Ordem de São Bento). Mas esta designação é ainda muito mais antiga, pois Carlos Magno proíbe, na sua Capitular de 23 de março de 789, o batismo dos sinos – ut cloccas non baptizent. É claro que não se proíbe aqui a bênção dos sinos, mas apenas certos costumes, eivados de superstição, que se iam introduzindo e cujo objeto era tornar este rito cada vez mais parecido com o do sacramento do Batismo. Apesar da antiguidade da designação batismo dos sinos, a Igreja nunca admitiu e conservou sempre nos seus livros litúrgicos a de bênção.
De todas as fórmulas que se conhecem desta bênção a mais antiga é a que se encontra no Liber Ordinum da igreja visigoda e mozárabe e que se compõe de um exorcismo – Exorcimus ad consecrandum signum basilice – e de uma bênção – Benedictio ejusdem. “Este texto, diz Dom Férotin, é o mais antigo que conhecemos para a bênção dos sinos de uma igreja. É diferente de todas as fórmulas impressas ou manuscritas que encontrei. É muito anterior à ocupação muçulmana, talvez mesmo do século VI. Todavia, como observa Dom H. Leclercq, “não se pode duvidar um só instante de que a fórmula espanhola, com o seu simples exorcismo e a sua bênção, não representam o tipo original desta cerimônia”. Nesta fórmula não se faz menção alguma da ablução e das unções que aparecem já no século VIII no Sacramentário de Gellone (c. 750) e no Pontifical de Egberto, bispo de York (+ 766) e no século IX em um Códice de Reims, que nos dá em substância a fórmula do Pontifical Romano. Acerca desta fórmula do Pontifical Romano para a bênção dos sinos, diz Dom Cabrol (n.e. monge beneditino e teólogo francês falecido em 1937): “Admiramos, na verdade, como se deve, as belas páginas de prosa e os admiráveis trechos de poesia que os sinos inspiram. Mas, parece-nos que este conjunto de salmos e de ritos encerram tanta poesia e um lirismo mais sublime do que as mais elogiadas páginas de Victor Hugo e Schiller”.
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Para a bênção de sinos,
as rubricas prescrevem o uso de báculo pastoral e mitra e pluviale de cor branca.
Na foto acima, Bento XVI prestes a iniciar as I Vésperas de Santa Maria Mãe de Deus
Com preparação para a grande cerimônia que se vai realizar, o Pontífice, revestido de pluvial, sentado no faldistório recita com os ministros os Salmos: – 50. Miserere mei Deus, 53. Deus, in nomine tuo salvum me fac, 56. Miserere mei, Deus, miserere mei 66. Deus, miseriatur nostri, 69. Deus, in adjutorium meum intende, 85. Inclina, Domine, aurem tuam, 129. De profundis.
Em seguida, benze a água com a fórmula ordinária, ajuntando a oração:
Derramai, Senhor, sobre esta água a bênção celeste e fazei descer sobre ela a virtude do Espírito Santo, para que, tendo sido rociado com ela este vaso, destinado a convocar os filhos da Santa Igreja, dos lugares onde ressoar este sino, se afaste para longe a virtude das ciladas dos inimigos, a sombra dos fantasmas, a violência dos turbilhões, os golpes dos raios, os estragos das trovoadas, os desastres das tempestades e todos os espíritos das procelas; e, ao ouvirem a sua voz os filhos dos cristãos, aumente intensamente a devoção para que, correndo para o grêmio da sua piedosa mãe, a Santa Igreja, vos cantem na assembleia dos Santos um cântico novo, que reproduza o som vibrante da trombeta, a melodia do saltério, a suavidade do órgão, a exultação do tambor, a alegria do címbalo, para que, no templo santo da Vossa glória possam com suas homenagens e preces convidar a multidão do exército dos Anjos. Por nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, que Convosco vive e reina na unidade do Espírito Santo de Deus, por todos os séculos dos séculos.
Depois o Pontífice deita o sal1 na água e conclui a bênção na forma ordinária (n.e. leia-se “ordinária” como relativo ao costumeiro da bênção segundo o rito antigo). Esta bênção é provavelmente de origem galicana e o Sacramentário de Gellone (750) é o documento mais antigo em que ela se encontra.
O Patriarca russo Cyrill I abençoa segundo o rito bizantino um sino de enormes proporções
Terminada esta, o Bispo começa a lavar o sino e os ministros continuam a ablução. Qual a origem desta ablução e das unções? Até agora não se pode ainda dar uma resposta satisfatória. O significado desta ablução é claramente indicado na oração da bênção da água. Enquanto uns ministros lavam o sino, o Pontífice com outros ministros rezam os salmos 145 a 150. “A escolha dos salmos é feita com gosto. São os salmos de louvor… Vê-se claramente pela leitura destes salmos que se considera o sino como uma voz que canta os louvores de Deus e que celebra a sua glória no meio dos homens. As palavras Laudate Dominum, laudate eum, laudate eum sol et luna, laudate eum coeli coelorum, laudate Dominum in sanctus ejus, repetidas a cada passo com um estribilho, com o tempo produzem no ouvido uma impressão análoga àquela que produz o choque do badalo mil vezes repetido sobre o bronze sonoro do sino” (Dom Cabrol).
Tendo os ministros enxugado o sino com um pano, e terminada a recitação dos salmos, o Pontífice traça na parte exterior do sino uma cruz com o Óleo dos Enfermos, dizendo depois a seguinte oração:
Ó Deus, que pelo bem-aventurado Moisés, Vosso servo, pelo qual promulgastes a lei, mandastes fazer trombetas de prata para que, tocando-as os Sacerdotes no tempo do sacrifício, o povo, avisado pelo seu som melodioso, se preparasse para Vos adorar e se reunisse para Vos oferecer os sacrifícios; para que, excitado para a guerra pelo som delas, prostrasse as forças dos inimigos; nós Vos pedimos que façais com que este vaso, preparado para a Vossa santa Igreja, seja santificado pelo Espírito Santo, para que os fiéis pelo seu toque sejam convidados para o prêmio. E, quando aos ouvidos dos povos ressoar a sua melodia, aumente neles a devoção da fé; sejam repelidas para longe todas as ciladas do inimigo, o fragor do granizo, os perigos dos turbilhões, a impetuosidade das tempestades; abrandem-se os trovões destruidores; que o sopro dos ventos se torne saudável e moderado; e que a Vossa mão poderosa destrua as forças aéreas para que, ouvindo este sino, se encham de pavor e fujam diante do estandarte nele traçado da Santa Cruz do Vosso Filho, ao qual se dobra todo o joelho no céu, na terra e no inferno e toda a língua proclama que o mesmo nosso Senhor Jesus Cristo, tendo destruído a morte no madeiro da Cruz, reina glória de Deus Pai, com o mesmo Pai e o Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. R. Amém.
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O Pontífice, tendo enxugado a cruz feita sobre o sino, começa a seguinte antífona que a “schola” prossegue:
A voz de Deus faz-se ouvir sobre muitas águas, ressoou a voz do Deus de majestade: o Senhor faz-se ouvir sobre muitas águas.
Depois reza-se o salmo 28. Afferte Domino filii Dei, admiravelmente escolhido, e que o sino nos é apresentado como a voz de Deus falando aos homens e instruindo-os. E quantas e quantas ovelhas tresmalhadas não têm convertido o simples toque do sino, despedaçando a dureza desses corações enregelados, pondo-lhes diante dos olhos a vida futura, excitando neles os mais vivos sentimentos de arrependimento e de amor de Deus?!…
Ao lembrar o sacramento da Confirmação,
o ministro unge o sino com o Santo Crisma em quatro cruzes.
Na foto acima, o Papa Bento XVI assopra dentro do vaso para a bênção do óleo crismal,
durante a Missa dos Santos Óleos na Quinta-feira Santa de 2011.
Enquanto se canta o salmo, depois do qual se repete a antífona, o Bispo faz na parte exterior do sino sete cruzes com o Óleo dos Enfermos e quatro na parte interior com o Santo Crisma. As unções com o Óleo dos Enfermos são um exorcismo. Mas, por que razão se emprega aqui este Óleo e não o dos Catecúmenos, como se faz em todos os outros exorcismos? É que, como na Extrema Unção, aqui “é atribuído ao Óleo dos Enfermos poder espiritual não só de exorcizar, mas também de fortalecer; ali, no combate da agonia contra o demônio, aqui, na luta com as tempestades e os espíritos infernais que ‘vagueiam, pelo mundo’”. Em ambos os casos, o Óleo é uma medicina que dá saúde ao corpo, que dá salubridade ao ar – “venturum fabra fiant salubriter ac moderate suspensa” (Dom Duarte Coelho, Curso de Liturgia Romana, I, pág. 103). Fazem-se quatro cruzes com o Santo Crisma para que, por meio dele, o sino seja santificado e consagrado; por isso, o Pontífice diz ao traçar essas cruzes:
Senhor, que este sino seja santificado e consagrado. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Em honra de Santo N.
A paz seja contigo.
Se a bênção do sino se parece com o Batismo, e até é chamada com este nome, este rito faz-nos lembrar a Confirmação.
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1 [observação original do texto] O costume de deitar sal na água benta ordinária data, pelo menos, do século VI. Parece que no século VIII deitavam também óleo na água usada na bênção dos sinos. Assim o Sacramentário de Gellone [n.e. conde católico francês] diz: Dum cantes, laves eum de aqua benedicta eum oleo et sale [t.e. Enquanto canta, lave-o com água benta, óleo e sal]. A mesma prescrição se encontra em um códice de Reims (século IX), bem como em um Pontifical do século XI pertencente à Catedral de Aorta. De fato, o Sacramentário Gelasiano (século VIII), numa forma da bênção da água benta ordinária, manda deitar nela vinho e óleo.