“Nem Deus afunda esse navio”
A Igreja sempre esteve presente na história humana. Seja como mestra ou como padecente de perseguição; seja como único farol capaz de guiar em alguma situação ou submetida ao julgo de quem a invejava e desejava destruí-La; seja como creditada de portadora da Verdade ou submetida a mentiras contra sua imaculada natureza: a Igreja, aos poucos espalhada pelos quatro pontos cardeais, assistiu ao desenvolvimento das sociedades.
À primeira vista, não tem nada a ver. Mas, neste artigo, apresentaremos que até mesmo no navio que escreveu sua história na humanidade quando, por torpe vaidade, fez perecer inúmeras vidas, a Igreja estava presente. Sim, até mesmo nas crônicas do Titanic, de cujo naufrágio o dia 15 deste é centenário, os católicos estão presentes e, sendo testemunhas desse acontecimento imortalizado no filme homônimo de 1997, têm autoridade para relatar a sua versão dos fatos.
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Quando o navio afundou, as pessoas não conseguiam crer que um triunfo da inteligência humana, o que havia de mais moderno e seguro no transporte de passageiros na época, poderia ter mergulhado nas profundezas do Oceano Atlântico, apenas três horas após chocar-se contra um iceberg. A grande questão era: “Como algo construído com ferro e aço poderia ter sido literalmente rasgado por um bloco de gelo?!”. Não poderia ter sido apenas um mero acidente. Buscava-se uma explicação mais profunda.
Docas da construção do Olympic e do seu irmão gêmeo, o Titanic, à direita
Poucos dias após o desastre, espalhou-se em partes da Irlanda e nas comunidades irlandesas nos EUA, a história de que o Titanic fora afundado em um ato de retribuição divina pelas blasfêmias proferidas pelos tripulantes e engenheiros, que, com grande presunção, afirmaram ser o navio inafundável até mesmo se Deus o quisesse afundar. O navio teve sua construção em Belfast, Irlanda do Norte, região de maioria protestante e extremamente anticatólica. Ainda nos dias atuais, o histórico antagonismo entre católicos irlandeses do sul e protestantes irlandeses do norte (presbiterianos, em maioria) é causa de mortes e de perseguições na sociedade irlandesa. Pouco antes da construção do Titanic, William James Pirrie, político de destaque na Irlanda do Norte e presidente da Harland and Wolff, empresa especializada em construção de navios, ordenou a proibição da contratação de trabalhadores católicos por pertencerem a uma “igreja papista e venenosa”. A medida foi aceita com grande entusiasmo e caso fosse descoberto algum católico trabalhando ilegalmente, este poderia ser espancado e perderia o emprego imediatamente.
O Titanic em sua doca
Apesar de os católicos haverem sido banidos da construção, não havia proibição para os passageiros. O padre Thomas Roussel Davids Byles deixou seu nome gravado na História. São Pio X, então pontífice reinante, chamou-o de um verdadeiro mártir, um homem que deu sua vida para a salvação das almas. Filho de um rico empresário inglês e também pastor congregacional, sobrinho de um alto membro do parlamento britânico, o jovem Thomas, enquanto estudante de Matemática, História Moderna e Teologia na Universidade de Oxford, desenvolveu um grande interesse pelo catolicismo, o que levou-o à conversão. Lecionou em um colégio, e, não podendo realizar seu desejo de ingressar numa ordem religiosa devido à sua débil saúde, foi enviado para estudar em Roma, onde fora ordenado em 15 de junho de 1902. Seu irmão emigrou para os EUA e também se converteu ao catolicismo, convidando o padre para assistir seu casamento. O padre Byles celebrou a missa da oitava da Páscoa na manhã do dia do naufrágio, e recordou na homilia que todos têm a necessidade de “um salva-vidas em forma de consolo religioso em meio aos naufrágios espirituais”. De fato, segundo as testemunhas, o padre inglês foi um verdadeiro herói até o fim. Ajudou os passageiros da terceira classe a subir para as partes mais altas do navio, ajudou na evacuação para os botes salva-vidas, ouviu confissões e deu conforto espiritual aos que estavam em desespero. Há relatos de que até protestantes e judeus recorreram ao padre no último momento, muitos pedindo uma confissão, talvez porque Deus os concedera uma última chance de aceitar a Verdade, ao contemplar a face serena de um homem trajando sua batina negra, com rosário na mão e a recitar passagens do Apocalipse. Perto do fim, entre gemidos e lágrimas, pessoas de diversos credos recitavam em coro: “Ave Maria… rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”. Por diversas vezes lhe foi oferecido um lugar em um barco salva-vidas, no entanto, o padre replicara dizendo: “Não irei até salvar a última alma, nem que isto me custe a vida”. É salutar ressaltar que havia também no navio dois outros sacerdotes católicos. Ambos foram orientados pelo padre Thomas Byles, que impressionava a todos com sua serenidade, para que o ajudassem a atender o grande número de passageiros.
Rev.do pe. Thomas Roussel Davids Byles, um verdadeiro mártir, nas palavras de São Pio X
O jovem padre Juozas Montvila, lituano e sacerdote da Igreja Greco-Católica Ucraniana em comunhão com Roma, exercia seu ministério clandestinamente em seu país. Na época, a Lituânia estava sob a dominação russa e o Tsar Nicolau II queria o avanço da Igreja Ortodoxa Russa no país. Os católicos de Rito Latino deveriam ser tolerados, já que a Rússia tinha que manter boas relações com a França e com o Império Austro-Húngaro, defensores do catolicismo latino lituano. Entretanto, os católicos de rito bizantino ucraniano eram considerados verdadeiros vermes insignificantes e deveriam ter sua fé reprimida a qualquer custo. (Infelizmente, ainda hoje, esta é a mentalidade de muitos ortodoxos em relação aos católicos de Ritos Orientais. Sabe-se que alguns líderes ortodoxos ucranianos e russos pediram à população que rezasse novenas pedindo à Virgem Maria a queda do avião que trouxe o Papa João Paulo II à Ucrânia. Não obtento êxito, mandaram desinfetar as ruas por onde o Papa passou. Toda essa raiva foi motivada pela beatificação de mártires da Igreja Greco-Católica Ucraniana). As autoridades imperiais descobriram que o padre Montvila estava celebrando às escondidas e, para não ser preso por desobediência, já que não queria deixar o ministério, resolveu emigrar para os EUA. Auxiliou o padre Thomas Byles, ouvindo confissões e dando conforto espiritual durante o naufrágio. Também recusou um lugar em um bote salva-vidas.
Rev.do pe. Juozas Montvila, lituano, sacerdote greco-católico ucraniano,
vítima de perseguição do regime tsarista russo.
Era famoso desenhista e reconhecido por seu talento artístico
O monge alemão, pe. Joseph Peruschitz, OSB, também estava à bordo do Titanic, rumo aos EUA, onde iria continuar seus estudos numa abadia. Também fora orientado pelo padre Byles para dar auxílio espiritual aos desesperados. Há relatos de que reuniu um grupo e rezaram o rosário até o navio naufragar. Recusou um assento no salva-vidas.
Rev.do Pe. Joseph Peruschitz, OSB, monge alemão da Baviera
Um futuro sacerdote também estava no navio, mas deixou-o antes de que partisse da Europa. O fotógrafo amador e jesuíta Francis Browne recebeu de presente de seu tio uma viagem na primeira classe apenas para a Irlanda, onde o Titanic fez parada antes de seguir rumo a Nova York. Escapou da morte no naufrágio, vindo a falecer em 1960.
O seminarista Francis Browne, SJ, à esquerda.
No centro, seu tio, o bispo Robert Browne, S.J.,
que lhe presenteou com a viagem em uma das melhores cabines da primeira classe até a Irlanda,
após ter levado seu sobrinho para conhecer o então Papa e hoje São Pio X
Os sobreviventes não conseguem precisar qual a última música tocada pela banda do navio. Alguns afirmam haver sido o belíssimo hino anglicano “Abide with me” – “Permanece comigo”, uma oração que implora a Deus que permaneça com quem ora, durante a vida, durante as suas tempestades e durante a morte: “Permanece comigo, pois rápido cai a noite e a escuridão aumenta, […] apesar das transgressões de minha juventude, ainda que eu tenha Vos abandonado, Vós nunca me abandonastes, […] venha, não em meio ao terror, mas gentil e bom para enxugar todas as lágrimas, ó amigo dos pecadores, […] não temo a nenhum inimigo, pois estais ao meu lado a me abençoar. Os males não me pesam e as lágrimas não me amarguram. Onde está o aguilhão da morte?; onde está, ó sepultura, a tua vitória? Eu ainda triunfarei se o Senhor permanecer comigo. Contemplo a Vossa Cruz diante dos meus olhos que se fecham. Que Ela brilhe e seja minha luz na escuridão e me guie aos Céus, […] na vida, na morte, ó Senhor, pemanece comigo”. A versão mais aceita é a que o navio naufragara ao som do conhecido hino unitário do século XIX, “Nearer my God to Thee” – “Mais perto, meu Deus, de Ti, […] ainda que seja a dor que me una a Ti”.
Botes salva-vidas usados na evacuação dos passageiros do RMS Titanic.
Não havia botes em quantidade suficiente para todos os passageiros
Alguns anos antes da tragédia, o escritor Morgan Robertson escreveu um drama intitulado “Futilidade”, ou “O Naufrágio de Titan”, um navio indestrutível que naufragava numa noite fria de abril, após chocar-se contra um iceberg. Muitos consideram isto uma premonição do que haveria de acontecer com o Titanic. Para outros, uma mera coincidência. É intrigante que tanto o número de passageiros, quanto outras características do Titan eram bastante semelhantes às do Titanic. Quem sabe se os construtores do verdadeiro “inafundável” não tenham se inspirado no livro e, por audácia, tenham desejado que a história fosse diferente?!
O naufrágio resultou na morte de 1.523 pessoas, até hoje considerado uma das maiores catástrofes marítimas de todos os tempos. Relatos nos contam que o iceberg era semelhante ao “dedo de Deus” a perseguir o navio. Sim, muitas são as evidências de que Deus quis, nas palavras do bispo anglicano de Winchester, que o nome Titanic fosse inscrito na História como um alerta da presunção humana, em que o homem pretende se igualar ou ser maior que Deus; que esse navio fosse um marco que recordasse a pequenez da criatura confrontada com o poder do Criador; que recordasse que é consumada loucura o homem empregar sua suposta sabedoria ou sua pouca inteligência e se arrogar superior ao Senhor. Porém, a sábia e misericordiosa Providência Divina, que quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da Verdade, fez uso de três sacerdotes da Santa Igreja para dar a oportunidade àquelas pobres almas de, no último momento, reconhecerem o único meio que oferecia a salvação que buscaram a vida inteira, e que naquele instante desesperador, quando diante delas apareceu o temível e desconhecido e ao qual nada vale o socorro dos homens, revelou-se um porto seguro que detinha o medo do que lhes aguardava no turbilhão das águas congelantes que as sugaria para os milhares de metros abaixo assim que a última parte do navio naufragasse.