Direto da Sacristia
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“Santo assassino”

Postado em 16 agosto 2011por Erick Marçal


Estamos acostumados a ouvir histórias de santos que desde a infância tiveram uma adesão humilde e forte à fé recebida em seu santo Batismo. Santos que se tornaram notáveis pelo amor incondicional à Igreja e ao próximo. Santos que gozavam de tamanha fé que lhes permitia operarem grandes milagres. Isto fez com que alguns encarassem a santidade como algo extraordinário, impossível de ser alcançado. Eis a razão pela qual muitos se escandalizaram quando foi encerrada a fase de informação diocesana e aberto o processo de beatificação de Jacques Fesch, jovem francês, condenado à prisão e finalmente executado na guilhotina há 53 anos, por ter matado um policial e ferido um funcionário de uma casa de câmbio numa tentativa de roubo.


Nascido em família rica, filho de um poderoso banqueiro belga, ateu e adúltero, indiferente quanto à formação religiosa de seus filhos. Não possuía gosto pelos estudos. Foi enviado à Alemanha para combater pelo exército francês. Depois de ter prestado serviço militar, foi-lhe arranjado um emprego com alto salário em um banco, sendo demitido após três meses. Levava uma vida mundana. Com fama de playboy, era dado à bebedeiras e frequentemente se envolvia com prostitutas. Casou-se aos 21 anos numa cerimônia civil com Pierrette Polack, filha da vizinha, que estava esperando um filho seu. Seus pais, antissemitas, não aceitaram o fato de sua nora ser filha de pai judeu. Não obstante o nascimento da filha, o jovem Fesch continuou a se encontrar com outras mulheres. Desses encontros nasceu Gérard, filho bastardo que foi entregue aos cuidados de um orfanato. Logo após, o casal se divorciou.


Inquieto e deprimido, pretendendo fugir das responsabilidades da família que, muito jovem, havia formado, decidiu empreender uma navegação solitária em redor do mundo. Pediu a seus pais a ajuda financeira necessária para comprar um barco e realizar tal viagem. Eles, não compreendendo a delicada situação emocional de seu filho, tendo-o por desequilibrado e ilusionista, negaram todo o apoio. A fim de conseguir recursos para o seu plano, acertou com o famoso cambista Alexander Silberstein a troca de dois milhões de francos por barras de ouro. No entardecer do dia 25 de fevereiro de 1954, dirige-se à casa de câmbio. Lá, apontou um revólver e exigiu a entrega do dinheiro que estava guardado na registradora. O cambista reagiu, sendo atingido com duas coronhadas na cabeça. Enquanto fugia com a quantia roubada, por meio de uma rua movimentada, deparou-se com um policial, Jean Vergne, de 35 anos, viúvo e pai de uma filha pequena. O policial, que havia sido alertado por alguém que estava a passar, de que aquele jovem havia assaltado uma casa de câmbio, ordenou que ele parasse e se entregasse. Hesitante, o jovem atirou três vezes, o que custou a vida do policial. Revoltada, a multidão começou a perseguir o assassino, que continuava a atirar, ferindo uma moça no pescoço. Finalmente, ele se rendeu e foi preso.




O crime ganhou repercussão na França. O homicida não era um homem comum, mas filho de um rico banqueiro. Levado a julgamento, não demonstrava arrependimento. Com seu característico humor sarcástico, limitou-se a dizer: “Arrependo-me de não ter usado uma metralhadora”. O tribunal marcou uma audiência futura, na qual seria decidida a condenação à guilhotina. Já na prisão de La Santé, foi levado ao capelão, a quem falou: “Não tenho fé. Não se preocupe comigo”. No entanto seu advogado, Paul Baudet, católico fervoroso, decidiu lutar não apenas para salvar a vida de seu cliente, mas, sobretudo para salvar sua alma. Jacques Fesch contava também com o apoio espiritual do velho capelão dominicano. Com o passar do tempo, começou a sentir uma angústia que penetrava no mais profundo de seu ser. Uma angústia pela vergonha que havia causado à sua família. Crescia o temor da morte, ao passo que os dias para sua possível execução se aproximavam. Entretanto, ele continuava cético e descrente. Chegou por vezes a ter desejos de atentar contra sua própria vida.


Primeiro julgamento







Foi na noite de 28 de fevereiro de 1955 que sofreu uma conversão repentina após ter passado por uma experiência mística. Assim descreve: “Estava deitado, olhos abertos, realmente sofrendo pela primeira vez na vida. Repentinamente, um grito saiu de meu peito, uma súplica por ajuda – Meu Deus – e, como um vento impetuoso que passa sem que soubesse de onde vem, o Espírito do Senhor me agarrou pela garganta. Tive a impressão de um infinito poder e de uma infinita bondade que, daquele momento me fez crer com convicção que nunca estive abandonado.”


Fesch ainda passaria dois anos e meio na prisão. Durante este tempo, levou uma vida ascética. Evitava qualquer regalia. Dizia sempre que na cadeia existem duas formas de viver, ou se rebelar contra sua própria situação, ou adotar um estilo de vida monástico. Tendo verdadeiramente a certeza de que começara a viver pela primeira vez, recluso em sua cela, transmitia a sua fé por meio de cartas que se tornaram objetos de reflexão por parte de jovens católicos franceses. Mesmo passando por períodos depressivos, o temor da morte desapareceu face ao temor de morrer em pecado. Finalmente, após quase três anos de espera, Jacques foi levado ao julgamento definitivo. Lá, demonstrou sincero arrependimento pelo que havia causado ao policial e à sua família. Todavia, não obstante a eloquência do advogado e as lágrimas de remorso do réu, a corte foi unânime em declará-lo condenado à morte. Agendada a data da decapitação, procurou aguardar a execução em paz e em oração, enxergando-a como uma forma de santificação. Resistiu à tentação de odiar aqueles que o haviam sentenciado ao cruel destino. Escreveu em seu diário: “Que cada gota do meu sangue apague um pecado mortal.”


As notícias de sua conversão comoveram milhares de pessoas. Sua última esperança seria a absolvição dada pelo presidente René Coty. Este, por pressão da polícia, não demonstrou misericórdia. Nas vésperas da execução, o jovem escreveu: “Último dia de luta. Amanhã, nesta hora, estarei no Paraíso. Que eu morra, se essa for a vontade do bom Deus. A noite avança e eu fico cada vez mais apreensivo. Meditarei na agonia do Senhor no Horto das Oliveiras. Oh, bom Jesus, ajudai-me, não me abandoneis. Mais cinco horas, e estarei na verdadeira Vida. Mais cinco horas, e eu verei Jesus!”. Foi guilhotinado em 1º de outubro de 1957.








Sua experiência mística, sua espiritualidade fervorosa, sua vitória na batalha contra si mesmo e contra os demônios da amargura e do desespero, inspiraram a abertura de seu processo de beatificação. Porém, não faltaram objeções. Uns alegaram que era um absurdo se beatificar um criminoso. Outros argumentavam que a beatificação poderia levar outros assassinos a usarem a desculpa de conversão como meio de evitar qualquer punição. É salutar ressaltar que na história da Igreja há um só condenado à morte por crimes que foi elevado à glória dos altares: o Bom Ladrão, a quem a Tradição atribuiu o nome de Dimas, morto com o Senhor no Calvário. Essa é a prova de que ninguém está perdido aos olhos de Deus, mesmo que a sociedade o tenha condenado e desprezado. Ele conhece nossas fraquezas, nossos limites e, com a ternura de um Pai, está sempre disposto a nos perdoar, mesmo que nos arrependamos nos últimos momentos.


Por se tratar de um precedente único, o processo de beatificação de Jacques Fesch foi tratado com a maior cautela. Foram analisados todos os seus escritos. Quando estava para ser aberto o processo, o Em.mo Sr. Cardeal Jean-Marie Lustiger, então arcebispo de Paris, declarou que para a Igreja declarar alguém santo, não significa propor à admiração seus erros ou crimes; pelo contrário, significa apontar o exemplo de conversão de alguém que, apesar de uma vida pregressa condenável, soube ouvir a voz de Deus e retornar a Ele. Não existem pecados, por mais graves que sejam, que impeçam a Deus de ir ao encontro do ser humano e de lhe propor a salvação, concluiu o cardeal.


Hoje, concluído o processo de beatificação, resta aguardar a comprovação de um milagre alcançado por sua intercessão. É provável que o Santo Padre Bento XVI tenha a honra de elevar aos altares em um futuro não muito longínquo, um jovem desorientado pertencente à alta burguesia, homicida e condenado à morte, que, no cárcere, logrou em pouco tempo altos cumes de espiritualidade com sua fulgurante conversão. Penso que se ele foi capaz de entregar-se totalmente a Deus, também nós, apesar de nossa fraqueza e miséria, não devemos nos desesperar, por pouco que perseveremos em sair de nossos pecados. Basta que ponhamos nossa confiança no nosso Salvador, sempre vivo a interceder por nós e disposto a nos perdoar.


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